Cadeiras se tornam esculturas, casas viram obras de arte, jardins arquitetônicos se convertem em instalações. Se o design já foi considerado um campo mais funcional e a arte o território da expressão estética, essas exposições demonstram como esses limites se embaralham. Essa permeabilidade abre espaço para uma experiência em que o cotidiano também pode ser pensado como campo poético.
Quatro mostras atualmente em cartaz em São Paulo apresentam esse encontro em diferentes registros. De revisões históricas a experimentações contemporâneas, de casas modernistas a espaços dedicados à memória de designers. São exposições que tratam a funcionalidade como parte da poética e mostram como o design pode ocupar o lugar de obra de arte.
A exposição revisita o ambiente doméstico do modernismo brasileiro, período em que arquitetura e design foram concebidos como uma experiência integrada de vida. A proposta é apresentar como casas modernistas dos anos 1950 combinavam mobiliário, objetos decorativos e soluções arquitetônicas em consonância com as artes visuais da época.
Aqui, a curadoria de Celso Lima propõe destacar um aspecto que costuma ser pouco valorizado na história do design nacional: o têxtil — apresentando, por exemplo, um biombo da designer têxtil Regina Gomide Graz, emprestado pela Coleção Yvani e Jorge Yunes, que insere o fio artesanal no diálogo entre arte e decoração. São exibidas também duas poltronas M1 (de 1955), parte do mobiliário original da casa, criadas pelo estúdio Branco & Preto.
O visitante percorre ambientes onde móveis, luminárias, peças utilitárias e têxteis — em tecidos, tramas e cores — compõem um panorama da modernidade brasileira. Cada objeto revela como a função se unia à estética num projeto de vida moderna, em que morar era também habitar uma obra de arte.
A exposição enfatiza ainda a ideia de síntese cultural daquela década, em que arquitetura buscava racionalidade e leveza estrutural e o mobiliário respondia com sofisticação e diálogo com a vida cotidiana.
A coletiva reúne artistas e designers contemporâneos em torno de uma questão central: até que ponto a forma determina a função? O título, Qualquer forma é outra forma, já antecipa uma multiplicidade de interpretações possíveis. As obras expostas transitam entre escultura, objeto utilitário e instalação, provocando um constante deslocamento entre categorias.
São 23 artistas de diferentes gerações que dialogam com 13 nomes fundamentais do design moderno e contemporâneo, numa multiplicidade de conversas visuais entre passado e presente. Algumas obras evocam utensílios domésticos, mas suspendem sua objetualidade funcional ao inserir dissonâncias formais; outras retomam referências a móveis ou luminárias, mas incorrem em distorções, inserindo-se no território da escultura.
A casa-galeria modernista que acolhe a exposição, projetada por Victor Brecheret e reformada por Rino Levi, torna-se parte integrante da experiência expositiva. A escala íntima, os vãos, os detalhes arquitetônicos interferem na fruição e convidam a uma leitura múltipla das obras. Diferentes galerias parceiras, como Kubikgallery, Nara Roesler, Fortes D’Aloia & Gabriel e Marília Razuk, participam da montagem e representação dos artistas.
Na Casa de Vidro, ícone da arquitetura modernista projetada por Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, a artista Luzia Simons propõe um percurso sensível que parte do jardim como ponto de partida e se desdobra entre fotografia, instalação e escuta do espaço.
O visitante percorre os ambientes da casa e contempla como as obras de Simons se entrelaçam com a paisagem. As fotografias realçam a organicidade das plantas, seus detalhes de sombra e luz; já as intervenções instalativas sugerem extensões do jardim no interior, projetando formas que se fundem com o vidro e com a natureza externa.
Neste diálogo sutil entre obra e arquitetura, Simons retoma a concepção de Lina Bo de entender a casa como síntese de arte, design e paisagem, atualizando essa visão ao inserir seus trabalhos no interior do Jardim Modernista. Não há hierarquia entre a obra e o espaço: design, arquitetura, jardim e arte se fundem em uma experiência integrada e sensorial.
A Casa Zalszupin encerrou nesta semana a exposição Fantasmagoria, curada por Vanessa Carlos (fundadora da galeria londrina Carlos/Ishikawa), em colaboração com a ETEL e a Almeida & Dale.
Mais do que uma homenagem ao designer Jorge Zalszupin, a mostra convidou a apropriações contemporâneas. Ambientes da casa modernista tornaram-se palco para conversas entre sua obra original e criações de artistas como Marlene Almeida, Korakrit Arunanondchai, Steve Bishop, Josiane M.H. Pozi e Issy Wood.
Peças históricas do mobiliário de Zalszupin, cuidadosamente restauradas, foram inseridas no percurso como “moradores” silenciosos, em diálogo com obras que evocam memórias, materialidade, presença e ausência. A residência, como testemunha viva, é capaz de “respirar” as histórias que carrega — o ar remete a ecos de conversas passadas, e os móveis parecem conter vestígios táteis de quem os manejou.
Fantasmagoria reafirmou que o legado de Zalszupin transcende o móvel, suas criações continuam a inspirar encontros entre arte e design, provocando reflexões sobre memória, materialidade e o híbrido no espaço doméstico.
Essas quatro exposições demonstram diferentes perspectivas sobre o encontro entre arte e design. Em Um design brasileiro nos anos 1950, há uma ênfase na consolidação do modernismo e no diálogo entre arquitetura, mobiliário e o têxtil como elemento de mediação estética. Já Qualquer forma é outra forma propõe investigar a instabilidade das formas e seus desdobramentos no campo da arte e do design contemporâneo, reunindo 23 artistas e 13 referências do design em cartografia experimental.
Na Casa de Vidro, Luzia Simons insere seu trabalho no espaço projetado por Lina Bo Bardi, costurando fotografia, instalação e o jardim modernista em uma experiência interdisciplinar. Na Casa Zalszupin, Fantasmagoria colocou a produção contemporânea em diálogo com o mobiliário histórico do arquiteto que marcou o design brasileiro.
Essas mostras evidenciam que as fronteiras entre arte e design são permeáveis. Ao visitar essas exposições, o público pode observar como móveis, casas, jardins ou objetos utilitários se tornam também obras estéticas. Trata-se de uma oportunidade de revisitar o passado e, ao mesmo tempo, refletir sobre como essas práticas seguem atuais no presente.
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