A atual exposição do Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), “Pedra Viva – Serra da Capivara, o legado de Niède Guidon”, coloca lado a lado peças do acervo arqueológico da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM, Piauí) – apresentadas pela primeira vez em São Paulo – e obras de arte contemporânea dos mais variados suportes (escultura, desenho, pintura, gravura, fotografia, vídeo, grafite, entre outros) e de um grupo diverso de artistas.
Com curadoria de Guilherme Wisnik, e com a contribuição dos convidados Gisele Felice e Ricardo Cardim, a mostra ocupa quase toda a área expositiva do museu, incluindo parte de sua área externa com esculturas e instalação, além de um projeto paisagístico de Cardim.
O encontro entre arqueologia, arte rupestre, ecologia, paisagismo, arquitetura e arte contemporânea na exposição do MuBE dispara reflexões importantes sobre as origens da humanidade no Brasil. Reflexões essas que são lançadas através de uma poética dialógica produzida entre os artefatos arqueológicos e as obras de arte contemporânea na exposição, especialmente ao tangenciar as nossas referências de natureza e cultura material.
Os modos como percebemos as relações de influência entre essas esferas determina o valor que depositamos sobre os esforços dos pesquisadores, cientistas, ativistas e outros na preservação e conscientização sobre o nosso patrimônio ecológico.
Em meio a fotos e depoimentos da arqueóloga que figura no título da exposição, e diante das peças de arte rupestre, das ferramentas de pedra, e das urnas funerárias pertencentes ao acervo do FUMDHAM, assim como os fósseis de animais pré-históricos, o visitante da exposição é convidado a conhecer uma importante e recente história da arqueologia brasileira: a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí e a preservação do seu enorme patrimônio.
Na década de 1970, Niède Guidon foi responsável por iniciar e liderar um grupo que reuniu arqueólogos brasileiros e franceses em pesquisas nos diversos sítios de escavação da Serra da Capivara, e as suas pesquisas resultaram na fundação do Parque Nacional em 1979.
A arqueóloga de nacionalidade brasileira e francesa (por descendência do pai francês) viu-se obrigada a se auto exilar na França no final dos anos 1960 quando a ditadura militar instaurou uma perseguição política contra professores da Universidade de São Paulo, onde Niède realizava suas pesquisas e dava aulas. Durante o exílio, ela conseguiu o apoio e suporte financeiro do governo francês para realizar expedições periódicas, deslocando-se junto ao grupo de pesquisadores entre o Piauí e a França. Com a fundação do Parque no final da década de 1970, Niède retornou definitivamente ao Brasil e se instalou na Serra da Capivara, onde trabalha e reside até hoje.
A exposição lança um olhar renovador sobre as descobertas arqueológicas de Niède Guidon ao ressaltar o seu potencial transformador para a maneira como compreendemos a chegada do Homo sapiens no Brasil e, consequentemente, as nossas noções atuais de cultura. Medições de Carbono-14 que dataram traços de fogueira de 48 mil anos atrás contestam diretamente a teoria predominante de que a espécie humana só teria chegado ao sul do continente americano há menos de 12 mil anos, depois de atravessar o Estreito de Bering, tornando muito viável a teoria de que o ser humano já dominava a navegação antes do surgimento das potências navais europeias e teria chegado dessa forma à América.
Além disso, a arte rupestre revelada pelas pesquisas arqueológicas no Parque aponta para diferenças significativas em relação às famosas pinturas rupestres encontradas na Europa. Enquanto no caso da última as pinturas são associadas a processos de evocação mágica para o bom-sucesso de uma caça, na Serra da Capivara no Piauí a arte rupestre sugere uma transmissão codificada de conhecimento entre gerações, através da representação de cenas de convívio entre humanos e animais, além de cenas de batalha, sexo e dança, conforme destacam os textos da exposição.
Em entrevista concedida a Artsoul, o curador Guilherme Wisnik concordou que
“as descobertas dela [Niède] mostram que há uma antiguidade muito maior da presença humana aqui. Portanto, isso embaralha essas questões. E na medida que embaralha, também embaralha um pouco, eu diria, a prevalência da referência europeia sobre nós. Porque outros valores passam a ser possíveis de ser reivindicados. Se nós somos mais antigos do que pensávamos, quem somos nós? Se nós não somos esse povo novo, esse povo jovem, esse povo condenado ao moderno, esse português que chegou numa terra onde não havia nada, como muitas vezes se pensa… então, quem somos nós?”.
Amostras da pintura rupestre encontrada na Serra da Capivara ocupam um lugar de grande destaque na exposição. Na passagem central do grande corredor da galeria do museu para a área que antecede a saída, foi construído aquilo que o curador Guilherme Wisnik apelidou durante a montagem de “Capela Sistina da Capivara”. Painéis pretos e curvados contornam de forma descontínua a área sob a claraboia que difunde luz natural para dentro do subsolo.
No interior desse espaço, encontramos as amostras de arte rupestre dentro de grandes vitrines de vidro. “Ali é o grande tesouro”, explica Wisnik. O destacamento dessa parte da exposição do seu entorno serve “para comunicar ao visitante que ele está na presença de peças muito valiosas, em vários sentidos de ‘valioso’”.
O texto de Gisele Felice identifica que esses desenhos rupestres foram realizados entre 12 e 6 mil anos atrás e exprimem uma variedade de representações: formas geométricas, figuras zoomorfas (animais), antropomorfas (humanas), fitomorfas (plantas), além de impressões de mãos, dedos, e cenas diversas.
Ela constata, ainda, que a recorrência de combinações de signos entre as pinturas descobertas nos diversos sítios arqueológicos da Serra aponta para um sistema de comunicação dos povos originários, permitindo a análise das temáticas e técnicas empregadas, para além de um viés meramente interpretativo.
A não separação entre as obras de arte e os artefatos do FUMDHAM no restante da exposição não resulta na sobreposição de valores ou sentidos, mas, na verdade, evidencia o lugar ambivalente que os artefatos ocupam na proposta curatorial: representar física e materialmente o legado do trabalho de Niède Guidon, e, ao mesmo tempo, redimensionar as reflexões da arte contemporânea brasileira, confrontando-as ou ampliando-as com a figuração de marcas muito antigas do nosso espaço-tempo específico.
O curador Guilherme Wisnik entende que
“ao não separá-lo [o material arqueológico] completamente das obras de arte contemporânea, acaba criando-se um diálogo, e aí ele [o material arqueológico] pivota, ou redimensiona, ou ele dá um amparo poético de uma espécie de uma outra matriz – local, ritualística, ancestral – a partir da qual pode ser lido um bom acervo de arte contemporânea tal como esse que foi escolhido para a mostra”.
Ao longo de toda a exposição encontramos exemplos deste diálogo. A sala introdutória, onde fotos e depoimentos de Niède Guidon recontam a história do seu envolvimento com a Serra da Capivara e a criação do Parque Nacional, apresenta também algumas esculturas em pedra sabão de Solange Pessoa.
Imediatamente visível ao lado delas, no piso mais abaixo, está a primeira projeção da exposição: uma filmagem de drone que sobrevoa a Serra, reconstituindo a sua geografia. Essa filmagem é acompanhada pelo som de mar, “porque aquilo foi oceano há milhões de anos”, lembra Wisnik. As esculturas de Solange Pessoa, com seu brilho opaco e suas formas côncavas, remetem, assim, às conchas, pedras e corais calcificados que preenchem o fundo dos mares e oceanos. O efeito estético da filmagem aérea do drone é, então, capaz de destacar as formações geológicas do seu lugar físico e real, levando-as para o campo da contemplação. Adicionado à camada sonora do mar – simbólica da vontade de evocar um lugar outro, anterior, passado –, isso permite ao espectador teorizar sobre as possibilidades de a arte estar na natureza, dos terrenos e geografias serem a origem da cultura visual e material da humanidade no nosso território.
Adentrando o grande corredor da galeria do MuBE, estão as obras de artistas que, em sua maioria, viajaram para a Serra da Capivara e realizaram trabalhos que lidam diretamente com a experiência daquele lugar. Esse é o caso dos desenhos de Roberto Burle Marx e Andrés Sandoval. Se o grande desenho realizado pelo primeiro representa de forma organizada uma paisagem da Caatinga e as suas diversas espécies vegetais, considerando, inclusive, a escala humana e a perspectiva geométrica, os pequenos desenhos de Sandoval parecem investigar as impressões formais causadas pelos elementos da paisagem, fragmentando-os de modo que se tornam quase abstratos no plano bidimensional.
Próximos a esses desenhos, estão dispostas pinturas e fotos de Mauro Restiffe, Marina Rheingantz e Rodrigo Andrade, que apresentam diferentes perspectivas da paisagem da Serra. “Dali em diante começam a entrar os objetos arqueológicos propriamente ditos, combinados a trabalhos de arte contemporânea que já não tem um vínculo tão direto. Às vezes tem, às vezes não tem”, comenta o curador Guilherme Wisnik.
Já ao final da exposição, as obras parecem abstrair ainda mais do contexto específico da Serra, sugerindo uma espécie de conclusão que se dirige ao tempo presente e, de certo modo, a reflexões mais relativas e pessoais, com os trabalhos de Santídio Pereira, Lidia Lisbôa e Raphael Oboé, por exemplo. Eles ganham, porém, camadas existenciais através da presença das urnas funerárias ao lado da saída e especialmente devido ao espaço de passagem que leva para essa parte final da exposição.
A emblemática rampa no interior da galeria do museu é estampada por uma projeção vinda de cima, mostrando fotos dos grafites e pinturas de Tec Fase em São Paulo. É como se a rampa nos levasse do tempo das capivaras e preguiças gigantes para a era das metrópoles e da opressão da memória — e vice-versa. Nesse sentido, Wisnik afirma que
“a rampa serve como esse elemento de ligação através do qual a antiguidade, ou a anterioridade, ou a ancestralidade daquilo tudo se atualiza no urbano contemporâneo, em outras formas de linguagem, e dão essa presença bastante atual ao conteúdo da exposição, fazendo com que o tempo gire para frente e para trás e a gente não fique se sentindo numa exposição que apenas lida com o tempo remoto”.
A exposição “Pedra Viva” e a presença dialógica das obras de arte contemporânea em relação aos artefatos arqueológicos constituem uma analogia da própria vocação do MuBE: unir num único museu a escultura e a ecologia, a arte e a ciência. Normalmente consideradas áreas distintas, a possibilidade de relações frutíferas e igualitárias entre esses dois campos de discussão é o propósito central das atividades do museu nos últimos anos, como ressalta Wisnik, o curador da instituição.
“Gosto do conceito de campo ampliado ou de campo expandido – a ideia de que as várias áreas da cultura tem fronteiras muito porosas, isto é, não estanque, elas se relacionam. Não necessariamente você precisa delimitar o que é arquitetura, o que é escultura, o que é paisagismo, às vezes tudo isso se comunica, se torna indiscernível. Então essa é uma característica que eu tenho como pesquisador, como pensador e como curador, e, também, é uma característica do trabalho da Niède, porque você tem ali um trabalho de arqueologia, que é de ciência mais dura, digamos assim, junto com o trabalho ambiental, que é a preservação no Parque Nacional e com o trabalho educacional, que é formar uma população, oferecer emprego, criar renda, dar educação”, explica.
Ao relatar a sua experiência com os visitantes da exposição, o monitor do MuBE Raian Vidal destacou a sua potência transdisciplinar, considerando a variedade de interpretações e interesses que ele tem visto emergir do público. Vidal, que participou do processo de coleta, transporte e montagem das peças arqueológicas do FUMDHAM, também enfatizou a importância do envolvimento da população local na preservação dos diversos biomas do Parque Nacional da Serra da Capivara, e exemplificou com o fato de que alguns dos artefatos do FUMDHAM, antes de serem incorporados à coleção, foram encontrados e preservados pelos próprios locais, mesmo sem saberem a princípio que se tratava de artefatos arqueológicos.
Uma parte desses artefatos está presente na exposição, assim como algumas esculturas em argila produzidas por crianças que frequentam a ONG local, o Instituto Olho d’Água. Raian Vidal relatou que, em sua viagem à Serra, ficou evidente o impacto de Niède Guidon sobre a região e o desenvolvimento econômico da sociedade local: “Foi a criação da faculdade [Universidade Federal do Vale do São Francisco, Campus Serra da Capivara], foi a criação dos museus [o Museu da Natureza e o Museu do Homem Americano], foi a cerâmica, muito importante também [para a economia local]. São os restaurantes lá perto, são as pousadas dos locais… então esse é o legado da Niède, esse comprometimento com a população local. E ela continua lá, até hoje”.
Serviço:
Exposição “Pedra Viva – Serra da Capivara, o legado de Niède Guidon”.
Acervo da Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM mais artistas: Alberto Martins, Andrés Sandoval, Anita Ekman, Artur Lescher, Bruno Dunley, Carl Friedrich Philipp von Martius, Carmela Gross, Castiel Vitorino Brasileiro, davi de jesus do nascimento, Denise Milan, Edgard de Souza, Fernando Limberger, Guga Szabzon, Gustavo Caboco, Iran do Espírito Santo, Laura Vinci, Leonilson, Lidia Lisbôa, Maria Lira Marques, Marina Rheingantz, Mauro Restiffe, Miguel dos Santos, Nilda Neves, Raphael Oboé, Roberto Burle Marx, Rodrigo Andrade, Santídio Pereira, Solange Pessoa, Tec Fase, e Valentina Tong.
Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia – MuBE, Rua Alemanha, 221 – Jardim Europa – São Paulo, SP.
Visitação: de 15/04 a 06/08/2023. Aberto de terça-feira a domingo, das 11h às 17h. Entrada gratuita
Gabriela Gotoda é graduada em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP e atua com pesquisa, curadoria e produção crítica sobre artes visuais.