No caminho da sala principal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, está uma composição de fotografias do Projeto Parede que marcam a primeira experiência da artista Claudia Andujar em um território yanomami. A série Sonhos Yanomami foi organizada a partir dos registros feitos na década de 1970, período em que a artista vive próxima à comunidade yanomami e migra do fotojornalismo para um ativismo de intensa defesa dos povos originários que colaborou para a demarcação do Território Indígena no Brasil.
A artista transmite visualmente a cosmologia do povo Yanomami, os rituais dos líderes espirituais e o papel do sonho na conexão com os espíritos. Segundo o curador Cauê Alves, “os xamãs se deslocam durante o sonho na companhia dos espíritos, dos xapiri, que podem trazer conhecimento, cura e proteção para a comunidade”.
A biografia da artista é marcada por episódios de fuga, deslocamentos e perda de familiares, causados pela Segunda Guerra Mundial. São traumas que a fizeram naturalmente se sensibilizar com a causa de grupos vulneráveis e lutar, de forma consistente, para a valorização do saber ancestral e da continuidade da vida dos povos indígenas.
Claudia Andujar nasceu em 1931, na cidade de Neuchâtel na Suíça, e cresceu na Transilvânia, região hoje pertencente à Romênia. Registrada Claudine Haas em seu nascimento, possui raiz protestante por parte de sua mãe, Germaine Guye, e judaica por parte do pai, Siegfried Haas. Durante a ocupação nazista alemã na Transilvânia, toda a família paterna foi deportada para a Polônia e Alemanha e morta no holocausto. Claudine e sua mãe sobrevivem ao fugir para a Suíça. Após a guerra, a jovem mudou-se para Nova York e adotou o atual nome, Claudia.
Em 1949, casou-se com o espanhol Julio Andujar, mantendo seu sobrenome mesmo após a separação, menos de um ano após a união. A partir desse período, Claudia passou a ter contato com técnicas de pintura, em especial no estilo expressionista, até viajar para o Brasil em 1955, onde começou a experimentar a fotografia, técnica que a consagrou.
Estabelecida em São Paulo e sem saber falar português, a fotografia foi para Andujar uma mediação com o novo país. Em 1956, a fotógrafa iniciou viagens pelo Brasil e pela América do Sul, passando pela Argentina, Bolívia, Chile e Peru. Ao visitar a Ilha do Bananal, no estado do Tocantins, Andujar realizou seu primeiro projeto autoral fotografando os Karajá (autodenominados Iny), povo originário que habita a região dos rios Araguaia e Javaés.
No início da década de 1960, a fotógrafa realizou séries com diversos focos, investigando aspectos da vida pública e privada brasileira. Na série “Famílias Brasileiras“, iniciada em 1962, Andujar faz uma imersão em lares de família de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. No mesmo período, também realizou uma maior aproximação de povos originários, como a série que focou nas mulheres do povo Bororo, atualmente situados no estado do Mato Grosso, bem como seu primeiro trabalho junto aos integrantes do povo Xikrin, no atual estado do Pará.
Em 1966 entrou para o time de fotógrafos da revista Realidade, ampliando os focos temáticos de seus ensaios, como a migração, gênero e sexualidade, vícios, entre outros. O final da década traz à Andujar, entre outros acontecimentos decisivos, o casamento com o fotógrafo George Love, que estaria ao seu lado em projetos futuros.
Foi em 1971, em seu último trabalho para a revista Realidade, que Andujar teve contato com a etnia Yanomami pela primeira vez. Naquele ano, uma fotografia de sua série do povo Xikrin foi publicada em uma capa da The New York Times Magazine.
O trabalho desenvolvido com os Yanomami a partir desse período marca para a fotógrafa uma fase mais aberta à experimentação. Desde que os visitou na região de Catrimani, no estado de Roraima, Andujar realizou uma série de viagens de longa permanência, contando com o intermédio do missionário Carlo Zacquini para uma primeira aproximação.
Longe de um registro meramente antropológico, Andujar experimentou diferentes maneiras de representação para os rituais xamânicos e outras atividades da etnia. A fotógrafa explorou diferentes tipos de filmes, como o infravermelho, que a possibilitou chegar em variadas escalas cromáticas, assim como o uso de técnicas fotográficas para captar o movimento.
Inaugurada em de 05 de setembro, com previsão de encerramento em 28 de janeiro de 2024, a exposição “Sonhos Yanomami” apresenta obras recém adquiridas para o acervo da instituição.
As fotografias fazem parte de um dos trabalhos mais recentes de Andujar, gerando novas imagens a partir da sobreposição de cromos negativos produzidos desde seus primeiros anos em convivência com a comunidade. Essa sobreposição integra corporeidade aos diferentes elementos naturais que fazem parte da vida Yanomami.
Acrescentando diferentes tonalidades às fotografias, capturando movimentos em processos de longa exposição das câmeras, sobrepondo diferentes texturas, Andujar conseguiu transmitir uma visão própria daquela vivência, partindo de uma perspectiva sensível.
A partir desse ano, o acervo de Claudia Andujar será preservado e difundido pelo Instituto Moreira Salles – IMS. A coleção da fotógrafa inclui mais de 45 mil fotogramas, além de documentos e diversos itens que contemplam toda sua trajetória. A parceria de Andujar com a instituição já rendeu exposições nas unidades paulista e carioca, assim como itinerâncias pelas Américas e Europa.
A relação com os Yanomami não se restringiu somente aos fins artísticos e antropológicos. A fotógrafa adotou o ativismo pela causa indígena e, em 1978, fundou ao lado de Carlo Zacquini e dos antropólogos Alcida Ramos, Beto Ricardo e Bruce Albert a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), também conhecida como Comissão Pró-Yanomami. No ano anterior, Andujar havia sido expulsa da Funai e proibida pelo governo ditatorial de retornar à Amazônia.
Seu engajamento ficou mais forte justamente no contexto da ditadura que criou um projeto de abertura da Amazônia à uma exploração de suas terras e recursos de maneira devastadora. Um dos reflexos disso foi a propagação de doenças aos povos originários e o comprometimento de suas vidas.
Entre as preocupações da Comissão estava a demarcação das terras Yanomami na Amazônia, o que veio a ocorrer apenas em 1992. Apesar da demarcação, os Yanomami, assim como outros povos originários, sofrem as constantes invasões e perpetuação de um genocídio com raízes coloniais.
Desde que passou a trabalhar com a Galeria Vermelho e a Hutukara Associação Yanomami (HAY) – ONG liderada pelo xamã e líder yanomami Davi Kopenawa Yanomami – todo o trabalho comercializado pela galeria teve 33% do seu lucro de vendas repassado à ONG.
Ao longo de sua carreira, a fotógrafa recebeu diversos prêmios pela sua produção artística e engajamento social, como o Prêmio Anual de Liberdade Cultural da Lannan Foundation, como defensora dos Direitos Humanos em 2000, e também o Prêmio Severo Gomes da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos em 2003.
Em 2008, foi homenageada pelo Ministério da Cultura do Brasil por seu impacto cultural. Sua influência em relações internacionais lhe rendeu a Goethe-Medaille em Weimar, Alemanha em 2018. De acordo com a Galeria Vermelho, “Claudia Andujar compartilhou todas as honrarias com o amigo e companheiro de ativismo Davi Kopenawa Yanomami”.
Seu trabalho também foi apresentado na 24ª e 27ª edição da Bienal de São Paulo, além de estar presente em acervos de museus como o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires – MALBA, Pinacoteca de São Paulo, Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, MASP, Museum of Modern Art – MoMA, TATE Modern, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, entre outros. O Instituto Inhotim também possui uma galeria permanente dedicada à Andujar, com mais de 300 de suas fotografias.
O alcance da obra de Andujar é internacional, e seu impacto é admirável no aspecto da visibilidade pela luta Yanomami, assim como seus esforços pela preservação da vida de um povo que com ela criou uma aliança. Como reforçam as instituições que resguardam e celebram seu acervo, o trabalho da vida de Andujar se tornou uma luta pela preservação da cultura, da terra, e da vida Yanomami.
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