A artista Andressa Cantergiani apresentou no domingo (24), o último dia da SP-Arte, seu mais novo trabalho, Abrigo (2021). A obra é uma performance que pressupõe a participação de um espectador via zoom. A ação gerou um NFT Moments, ou seja, um momento exclusivo criado entre a artista e o espectador registrado como obra através de um contrato de autenticidade digital.
O espectador não é, porém, qualquer pessoa, mas o comprador da obra. A artista está com o trabalho anunciado para venda na plataforma Open Sea e quem comprar o trabalho poderá participar e fazer a interferência direta ao vivo na próxima apresentação da performance, que acontecerá no dia 03 de novembro deste ano no Festival de Arte de Porto Alegre.
São vários os materiais usados na performance, entre eles um abrigo de acrílico, sensores de presença, led RGB, capas de cobertores de alumínio e um computador.
Andressa Cantergiani, representada pela Galeria Mamute, desenvolve como linguagem central a performance, sempre em diálogo com outras linguagens como a fotografia, o vídeo e a instalação. Neste trabalho, explora questões sensíveis que relacionam o digital e o contato humano.
Sobre este projeto, a Artsoul conversou com a artista Andressa Cantergiani que nos contou sobre a trajetória conceitual do projeto e com Lalai Persson, colaboradora à frente do estúdio criativo da Menta Land que explica a tecnologia do NFT Moments e os desafios na produção da obra.
Artsoul – Qual o papel da Menta Land no projeto?
Lalai Persson – A Menta Land, que somos eu – Lalai Persson – e a Bia Pattoli, temos estudado a Web 3.0 (NFT, Metaversos, DAO, etc) há cerca de um ano. Desses nossos encontros (por Zoom) quase que diários, já que eu estou em Berlim e a Bia, em Londres, nasceu a vontade de trabalhar com artistas para explorar o uso dos NFTs, indo além da simples tokenização de algo. A Andressa é uma grande amiga e há tempos a gente tem conversado sobre possibilidades de trabalharmos juntas. Então o trabalho dela, que eu admiro muito, ficou no meu radar… o papel da Menta foi justamente pensar no desdobramento tecnológico da obra original que, no caso, foi o NFT. Nós acabamos participando da criação com ela. E, por fim, a Dux Cripto foi quem investiu no projeto e está fazendo toda a parte operacional.
Artsoul – Quais os desafios que você encontrou nessa produção? Foi a primeira no gênero (performance com tecnologia NFT) que você participou?
Lalai Persson – Essa foi a primeira que participei. Até então trabalhei em projetos de tokenização de artes visuais, mas que não tiveram um viés criativo. Os desafios surgiram na hora de executar. Mas o maior desafio foi como deixar o projeto inteligível, pois por mais que os NFTs ganharam o mundo, as pessoas no geral entendem muito pouco como eles funcionam. O projeto é muito simples, mas explicar que primeiro tem o NFT que é o ticket para entrar na performance e que depois essa participação vira “momento” e isso é um conceito cada vez mais usado nesse mercado, não é tão claro para todo mundo. E aí o restante são desafios do dia-a-dia: a conexão vai funcionar na hora? A pessoa que comprou o NFT vai entrar conforme previsto?
Artsoul – Você pode explicar para quem está iniciando as pesquisas sobre essa tecnologia, o que são os NFT Moments e como foi que pensaram em relacionar esse recurso com a performance?
Lalai Persson – Depois de algumas reuniões entre a Andressa, a Bia Pattoli e eu, não demorou para surgir a referência do NBA Top Shot, o primeiro projeto de NFT baseado em momentos. Eles surgiram como figurinhas que trazem momentos mágicos dos jogos da NBA. Você compra a imagem de um um momento X. A Ticketmaster, por exemplo, anunciou que criará sua série de momentos mágicos em NFTs dos shows que apresentam seguindo esse mesmo conceito. Eu fiquei pensando bastante na performance da Marina Abramovic, “The artist is present”, feita no MoMA. As pessoas iam lá, sentavam na frente dela e ficavam ali cara a cara com a artista. Enquanto isso, alguém que está com a pessoa que está lá sentada provavelmente está gravando aquele “momento” dela com a Marina. Isso é um momento, mas não é um momento oficial como registro da obra, nesse caso do NFT Moments é como se o artista assinasse a obra dizendo “sim, isso é um registro oficial”. Ou seja, o valor muda.
E, claro, se Abrigo é uma performance que emula o nosso isolamento social e ela estaria totalmente isolada do público, por que não incluirmos uma experiência com o Zoom, que tem feito parte da nossa rotina diária. Foi aí que surgiu a ideia de criar um NFT com 2 momentos distintos: o primeiro seria apenas um ticket que dava acesso a um link especial para o Zoom num horário definido em que quem comprasse esse NFT poderia entrar e fazer parte da performance. Esse momento seria gravado resultando num NFT MOMENT, um registro da obra em que a artista conversa com o/a comprador(a) numa intervenção por cerca de 10 minutos e isso interfere diretamente no andamento da performance.
Artsoul – Como foi o momento de criação deste trabalho Abrigo? Quando foi a primeira ideia, quais as inspirações conceituais?
Andressa Cantergiani – Em 2018 fiz um trabalho no Museu Militar do Comando Militar do Sul, em Porto Alegre, onde eu ocupei o museu. Foi uma ação-instalação, gosto muito de chamar meu trabalho assim, onde ocupei o museu por oito dias com a obra Combate. É o Museu das Forças Armadas daqui onde são expostos tanques de guerra, canhões e armamentos e é curiosamente o museu mais visitado pelas escolas.
Eu entrei no museu só com um macacão branco sem levar nada e convidei oito mulheres para participar comigo. A cada dia uma mulher, todas elas trabalhadoras da área de artes, pesquisadoras, curadoras, artistas, gestoras de instituições e amigas, sobretudo, me levava um kit de sobrevivência com alimentos, roupas e mais o que fosse inspiração. Era mesmo uma provocação, um kit de poesia e ao mesmo tempo coisas que eu precisava para passar o dia: alimentos, agasalho, etc.
Uma delas me levou esse cobertor aluminizado e desde então eu comecei a trabalhar com esse material, fiquei muito encantada por ele, pela sonoridade, pela textura e pelo signo dele de proteção e de abrigo utilizado em situações de emergência.
Em 2020, antes de fechar tudo em razão da pandemia, a Galeria Mamute fez uma coletiva com artistas mulheres chamada “Flutua, em diálogos ressonantes” com curadoria da Paula Bohrer. Nesta exposição, propus um trabalho para ser ativado com a participação do público, uma instalação performativa que era composta por uma arara de luz, então daí também vem a inspiração com o uso da luz, que tinham capas de chuva com esse material aluminizado. A ideia é que o público vestisse e circulasse, sobretudo na abertura, e tivesse esse simbolismo de abrigo, que deu o nome a este trabalho. Foi o primeiro indício do projeto atual com NFT.
No dia 13 de março fizemos a montagem e no dia 15 de março a cidade fechou com o lockdown, a abertura da exposição não aconteceu e o trabalho não aconteceu como eu tinha esperado, com a ativação do público. Acabou ficando fechado na galeria e depois abriu para visitação com hora marcada, mas funcionou como uma instalação, não como uma ação participativa como eu havia previsto.
A partir disso, por causa da não realização do trabalho como eu previa e com tudo que a gente viveu na pandemia, essa má gestão da crise, todo o horror de estresse, de tantas mortes e tanta negligência, além de artistas que perderam a possibilidade de trabalhar com o presencial, com performance e ter de se reinventar; isso tudo me trouxe a reflexão acerca do isolamento, do estar em casa e a relação com o abrigo. Me remeteu a essa manta aluminizada, esse cobertor emergencial que ao mesmo tempo isola e protege, relacionada com o isolamento social, com a impossibilidade de estar perto, de tocar, tudo isso tomou outra dimensão para mim.
Dessa experiência veio o desejo de construir o projeto, com as lâmpadas LED, uma casa, a princípio eu queria fazer na rua mas não consegui viabilizar. Quando fui pra Berlim eu tive uma sensação muito estranha de parecer que esse tempo em Porto Alegre não existia, parecia que eu tava em um não-lugar porque a cidade estava em uma situação mais controlada da pandemia, tudo aberto, as pessoas podendo sair, os índices de contaminação baixos. Esse lapso me deu um click, onde percebi que esse era o momento de viabilizar a obra.
Fiz a parceria com a Menta Land, o estúdio criativo que é responsável pela conexão com a tecnologia do blockchain e pensamos maneiras de unir nossas pesquisas. Há muito tempo venho flertando com tecnologia, mas não NFT e nem arte digital.
Eu falei para eles desse trabalho que abordaria o momento da pandemia, o isolamento, da reflexão das coisas que fizemos e repetimos durante esse período, com o excesso de telas do zoom, etc. Elaboramos então um projeto que não tínhamos visto feito ainda, uma performance presencial, digamos analógica, com o corpo, mas com interferência da tecnologia, do blockchain, do NFT, ao vivo. Conseguimos viabilizar com a parceria da DUX Cripto e da Financial Move.
Artsoul – É o seu primeiro trabalho em NFT? Como foi a escolha dessa mídia?
Andressa Cantergiani – É o meu primeiro trabalho com NFT, a escolha dessa mídia se deu pelas conversas com a Lalai, a head do Meta Land. Quando comecei a ouvir sobre NFT, fiquei muito curiosa com a ideia da descentralização, de como podemos circular em outros lugares, como podemos ser mais donos do nosso trabalho. Acho que a tecnologia do NFT nos ajuda com essa dinâmica. A Lalai sempre me dizia também que não bastava ser apenas NFT porque tudo pode virar NFT, então precisava de um sentido para o nosso projeto. Para nós, o sentido do NFT nesse projeto é o “moment”, que vem da NBA, quando as pessoas passaram a comprar trechos dos jogos de basquete como NFT. Foi aí que surgiu o NFT Moments. Trazendo isso para performance art, que é uma arte do ao vivo e nós trabalhamos muito com a documentação e registro desses atos, pensamos como poderíamos trazer o moment para dentro do trabalho. O que a gente quis além do registro é um trabalho interferido ao vivo, onde a pessoa entra comigo no zoom durante a performance, ela tem a perspectiva de dentro da casinha de vidro e criamos um momento único, depois gerando um NFT, patenteado na blockchain.
Artsoul – Seu trabalho já caminha na linha da performance, como foi a experiência de unir essas duas linguagens, a do corpo e a do digital?
Andressa Cantergiani – Sobre unir o corpo e o digital, tive muita inspiração durante o processo de construção da casinha e as pesquisas sobre o humano com a tecnologia, já um tema que tenho muito interesse. A questão do registro da performance é, inclusive, o meu tema de doutorado que acabei de defender a tese na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que se chama “Rastro performativo: os vestígios das ações como potência do corpo”. Na pesquisa falo desses rastros deixados pela performance, esse arcabouço que deixamos depois de fazer uma ação presencial, fotos, vídeos, voz, relatos e até mesmo a memória. Trabalho com isso há algum tempo e para mim, o NFT entra como registro único. Um registro que não está na blockchain pode ser um múltiplo, basta determinar a tiragem. Quando está na blockchain, se torna outra coisa.
Durante as pesquisas, entrei em contato com o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway e fiquei encantada. Ela aborda o assunto pela perspectiva de gênero e sexualidade, mas me interessei por esse corpo que não trabalha com polaridade, com binarismo, ele está no centro dessa contradição, da ironia. O ciborgue é isso, é máquina mas também tem vida e experiência social. É um ser híbrido. Acho que a tecnologia interfere muito em nós, principalmente após a pandemia, com toda essa vivência de zoom, de estar o tempo inteiro conectado, a gente já se transformou, não somos mais os mesmos. Isso acaba sendo o que sinto durante a performance. Quando termino, não sou mais a mesma, meu corpo está alterado, está modificado por essa experiência, que não é só a tecnologia de entrar ao vivo e depois gerar um NFT, mas é também a interferência dos sensores, da luz, que são interativos. Os sensores de presença tem a luz ativada quando as pessoas se aproximam, quando elas chegam a um metro e meio, que é o parâmetro do distanciamento social, a luz é ativada e passa do verde para o vermelho. Então há essas duas tecnologias operando dentro da obra.
Artsoul – O seu trabalho é o primeiro da Galeria Mamute em NFT, como foi essa experiência?
Andressa Cantergiani – Sou a primeira artista a trabalhar com NFT na Galeria Mamute, espero que mais artistas comecem a desenvolver mais porque é bem desafiador e traz a ideia do descentralizado. A web 3D já vem com essa ideia de descentralização e para nós artistas é muito interessante nesse momento.
Artsoul – Quais os maiores desafios no processo de produção, pensando que o NFT é uma tecnologia muito recente?
Andressa Cantergiani – O maior desafio foi a montagem da obra física. Para chegar nesse formato, ela passou por várias transformações, passou por tubo led até chegar no acrílico e viabilizar o sistema de iluminação que graças à parceria com a Modular Interactive Lighting, consegui ter agilidade. Aprendi a programar o sequenciamento de led com arduino, programando os sensores de presença. Essa parte foi a que mais deu trabalho e envolveu mais pesquisa. A gente reproduziu exatamente o desenho 3D feito pelo Eduardo Saorin e eu, foi um trabalho que muita gente colaborou e pensou junto. Tive uma rede de colaboradores, acho que isso faz parte do meu processo como artista. Todos os meus projetos envolvem muitas pessoas e eu trago muita gente para perto, para pensar junto, para trocar ideias e colaborar. Acho muito importante mencionar essa rede de parceiros e colaboradores deste trabalho.
Artsoul – Como foi a apresentação ontem e quais as expectativas para a próxima no dia 03 de novembro?
Andressa Cantergiani – A apresentação foi incrível, fiquei muito surpreendida com a participação do público, com as pessoas lá no Farol Santander (SP). O espaço tem uma arquibancada que não foi possível tirar, esvaziamos todo o atrium, aquela parte superior do Farol que é toda envidraçada, então parecia que estávamos numa cápsula, numa espaçonave, foi um clima muito interessante.
O público participou muito. Tínhamos capas aluminizadas, da primeira versão do Abrigo que deixei à disposição, as pessoas vestiram, chegaram perto, o sistema de luz respondeu à aproximação. Eu li o manifesto Abrigo em que mesclo textos e poesias minhas que tem a ver com o tema da pandemia e o meu aqui agora, naquela casa. A casa não tem circulação de oxigênio, isso é um dado importante. Eu vou entrando num processo de sufocamento, também tem a ver com a vivência da pandemia, do vírus e como ele age no pulmão. Falo dados sobre o meu aqui agora, ali, dentro da casa, sem ar, usando a capa de proteção que também aquece meu corpo e me leva à condensação, ao suor. É uma experiência física bastante intensa, uma vivência corporal muito forte. Mas foi um sucesso, estou com muita vontade de fazer de novo. No dia 03 de novembro vai ser maravilhoso, dentro do Festival das Artes de Porto Alegre, mais um parceiro dentro dos colaboradores e realizadores deste projeto, além da Galeria Mamute.
Acho que vai ser um sucesso! Eu quero que esse trabalho circule o mundo porque acho que tem um impacto visual e tecnológico, mas além disso nos leva a refletir de forma a sublimar um pouco esse momento. O que eu queria é trazer a reflexão sobre o que estamos vivendo, mas apontar para essa fuga, essa saída, porque é importante termos esperança e ver como a vida pode ir voltando aos poucos.
Acho importante frisar a relação do NFT com o abrigo. Há a perspectiva sobre o cuidado, como estávamos nos cuidando antes, como nos cuidamos durante a pandemia e como vamos nos cuidar a partir de agora. Esse acolhimento e a aproximação da tecnologia com o público é o propósito do NFT fazer sentido para nós. Não é simplesmente sobre usar o NFT, mas usar de uma forma que venha trazer esse calor, algo que parece ser tão gélido, tão frio e metálico, como essas capas mas que no fim, aquecem, acolhem e salvam de uma emergência. Estar perto uns dos outros é uma forma de sobreviver e se curar nesse momento.
A ação é resultado da parceria entre a artista @andressacantergianiart, o estúdio criativo Menta Land (@menta.land), a curadora de criptomoedas DUX Cripto (@duxcripto), a empresa de educação financeira cripto Financial Move (@financialmove), a Galeria de Arte Mamute( @galeriamamute), a Modular Interactive Lighting (@modular.mdlr), o Farol Santander Porto Alegre( @farolsantanderpoa) Espaço Ceia (@ceia_co) e Festival de Arte de Porto Alegre (@artesvisuaispoa). A trilha sonora é assinada pela soun worker Stefanie Egedy (@stefanieegedy) e desenho expográfico e projeto 3D por Eduardo Saorin (@edusaorim)
SERVIÇO
Festival das Artes de Porto Alegre
Performance Abrigo 2021, da artista Andressa Cantergiani
Data: 3 de novembro de 2021
Horário: 19h (duração: duas horas)
Local: Atrio do Farol Santander Porto Alegre (Espaço Ceia) – Rua 7 de Setembro, 1028,
Centro Histórico, Porto Alegre (RS)
Ingresso: gratuito
Entrevistas concedidas em outubro de 2021.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP