O ramo do design autoral e colecionável tem sido fortemente atrelado ao fazer manual a partir de técnicas minuciosas e uma ideia de exclusividade. Por outro lado, produções que recorrem às vias tecnológicas e pensam em acessibilidade também ganham espaço, como o caso da criadora Anna Machado, recentemente premiada na última edição da MADE – Mercado, Arte, Design – feira de design colecionável – na categoria Inovação, por seu trabalho autoral produzindo peças em impressão 3D.
Anna Machado é desenhista industrial formada pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Pioneira no uso da impressão 3D em objetos de decoração no Brasil, produz com essa ferramenta há 7 anos, desenvolvendo diversas linhas de trabalho, desde objetos decorativos e jóias, até móveis e obras de arte. Inspirada pelo cotidiano, suas peças orgânicas e sinuosas suscitam uma dicotomia do natural e o artificial através de processos tecnológicos. Na entrevista a seguir, concedida pela criadora à Artsoul, Machado expressa suas inspirações, revisita sua trajetória, e esmiúça seus processos criativos com novas tecnologias e materiais sustentáveis.
Artsoul – Você possui formação em Desenho Industrial e hoje sua produção passeia entre o design e as artes visuais. De que forma você une essas áreas no dia a dia? Em quais aspectos elas se encontram?
Anna Machado – A todo momento estou em pesquisa, sempre atenta. Uma forma de me nutrir é ir a museus, frequentar galerias, circulando nesses lugares eu tenho material para transformar em outras coisas. Acredito que você precisa ter bagagem visual para conseguir depois criar. É como se eu tivesse várias gavetas na cabeça, e no momento de criar algo, eu consigo abri-las e aproveitar esse material.
Design, artes visuais, teatro, o cotidiano – tudo eu acho que é material para depois ser transformado em algo novo. Arte e design são duas coisas diferentes, inclusive com pensamentos de processos distintos. É claro que uma peça de design pode inspirar algo artístico, e ser expressiva – algo que eu tento fazer com as minhas peças. Mas o design tem um processo de criação muito diferente da arte.
No design eu penso em aspectos como a usabilidade, ser minimamente escalável, no custo do produto final – aspectos que em meu trabalho artístico nem passam na cabeça. De toda forma, as minhas pesquisas artísticas me ajudam muito na hora de criar peças funcionais. Eu tento trazer essa inspiração e estudo da forma para o design.
Artsoul – Você já afirmou em outra entrevista que o seu processo criativo externaliza e materializa emoções e coisas imateriais? Como isso se dá?
AM – A primeira vez que isso ficou claro para mim foi quando fiz o “Vaso Raivoso”, na época da pandemia. Eu sentia tantas emoções – e acho que a raiva é uma das emoções que transborda, mas não necessariamente ela é pura. Na verdade, a raiva transborda outras coisas, que às vezes não sabemos expressar. E a criação desse vaso me devolveu tanta coisa ao toque, ao emocional, que pensei: “quero fazer mais disso, quero fazer com que as pessoas sintam algo tocando a peça, olhando a peça”.
Eu tenho criações mais ligadas ao estudo da forma, como essa última coleção que abordo os corais de Matisse, que pensam como tornar tridimensional algo que é bidimensional, mas que ao mesmo tempo fala de fluidez, assimetria, leveza. E tenho outras coleções que são mais cartesianas, que falam mais diretamente de determinados assuntos, como na série “Sentimentos”, em que eu fiz alguns vasos raivosos, o vaso da culpa, ou seja, sentimentos bem concretos. A minha próxima coleção, por exemplo, fala sobre abandono, um sentimento que ando investigando muito ultimamente. Eu gosto de ter o que falar sobre as peças, de contar e ouvir histórias. Então eu quero que as minhas peças também contem uma história.
Artsoul – Apesar de utilizar um processo extremamente tecnológico, sua produção resulta em peças orgânicas, assimétricas, e propõem uma inspiração nas formas naturais. Essa dicotomia entre o natural e o artificial é intencional, está no seu pensamento?
AM – Sim. A impressão 3D sempre foi muito usada para fazer bonequinho – sempre tem uma pós-produção, quase um brinquedo. Muitas peças de decoração feitas com impressão 3D são bem lúdicas e mais brincantes. Eu tento utilizar essa tecnologia para ter formas mais refinadas, maduras, com uma estética diferente do que geralmente é usada.
Eu quero algo que seja mecânico, pois acredito que isso valorize a ideia do projeto.
Quando um artesão faz alguma peça manualmente, muitas vezes, ele também tem um pensamento artístico conceitual, que fica em segundo plano aos olhos dos outros. Então, a partir do momento que eu imprimo a peça e ainda falo “eu faço tudo e desenho para não ter acabamento”, eu estou evidenciando o projeto, o pensamento, e a mensagem daquela peça.
Artsoul – E como foi iniciar esse tipo de produção no Brasil? O que a tecnologia de impressão 3D te permite enquanto designer e artista?
AM – Sete anos atrás eu cheguei com um material que não era o natural, e por mais que tivesse toda uma história por trás desse material, ainda tinha a questão de que não havia acabamento manual. Então eu tento agora justamente evidenciar cada vez mais o pensamento que tem por trás.
Atualmente as pessoas sabem mais o que é impressão 3D, estão mais familiarizadas. No início houveram muitos desafios: na forma como eu produzia, com relação ao material que uso. E você começa pensando “como é que eu vendo isso?”. Até para criar vocabulário do que estou produzindo. São anos de construção, até para falar sobre o que eu faço.
A impressão 3D foi uma forma que achei de fazer certas peças da forma que eu queria. Até cheguei a estudar cerâmica, mas não conseguia escalar do jeito que eu queria. Junto isso a ter um filho pequeno. Então pensei, “como que a vida profissional se completa com a vida pessoal?”.
De uns 10 anos para cá muito se falou sobre artesanato, sobre design feito à mão, só que quando você pensa em escalabilidade, é mínima. Não falo de industrialização, mas no mínimo de escalabilidade para o designer conseguir viver daquilo em um grande centro urbano. Então essas peças exclusivas e manuais precisam ter valor de arte.
Artsoul – Sustentabilidade é hoje um quesito incontornável nas discussões de todo tipo de produção. Quando você começou a usar fontes renováveis como o PLA, e por quê?
AM – Desde o início. Comecei a pesquisar materiais e conheci o PLA (um polímero feito a partir da fermentação de vegetais ricos em amido). O PLA tem uma característica que o permite imprimir bem, fica com um bom acabamento. Hoje o PLA é reciclável, mas quando comecei a usá-lo, não. Então eu guardava todas as peças que davam errado – e faço isso até hoje. Eu sempre guardo, porque são poucas, e picoto, catalogo e isso vira material para eu criar peças únicas.
Desde o início a sustentabilidade se fez presente na minha empresa. Além de recriar com o material das peças que deram errado, nós devolvemos os carretéis dos filamentos que utilizamos, além de contarmos com descarte seletivo. Então sempre tive essa visão de Lixo Zero. Os móveis, apesar de serem de fonte de petróleo, é reciclada. Ou seja, já foi outra coisa, não uso plástico novo, está em reuso.
Artsoul – Você foi premiada na feira MADE deste ano na categoria Inovação. O que esse prêmio significa para você e qual a importância do aspecto de inovação na sua produção?
AM – Eu fiquei muito feliz! Especialmente por ser em Inovação, porque eu realmente fui pioneira no uso da impressão 3D em objetos decorativos aqui no Brasil. Haviam muitas coisas que eu já queria ter feito com mobiliário, mas que não foi possível antes, pois eu não tinha fornecedor aqui. Coisas inclusive que já existia lá fora, e que eu via como possibilidade, mas haviam alguns impeditivos aqui. Então eu fico feliz de verem que eu enxerguei algum potencial que não tinha sido visto antes. Nesse momento passou um filme na minha cabeça, de ter me sentido muitas vezes inadequada, de chegar com um material que não era natural, e dizer que eu não fiz com a mão, mas sim com a máquina.
Eu fiquei realmente muito tocada e emocionada com o prêmio, me senti realizada. Todas as dúvidas que eu tive até hoje tiveram uma resposta, como: “Vai lá! Continua porque tem um caminho aí”.
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