Se não conhece o nome, conhece a obra. Se nunca ouviu falar de Mundano, já viu seus manifestos nas paredes da cidade de São Paulo e nas carroças de catadores de materiais recicláveis em várias partes do Brasil.
O grafiteiro e artivista começou suas experimentações em 1999 quando interagia com algumas paredes do bairro onde cresceu.
Na época, seus materiais eram apenas rolinho e latéx, o que o fez criar personagens mais brutos e simples. Personagens com grandes lábios, narizes e olhos, que fazem referência direta à sua forma de ver a cidade.
São personagens ativos; gritam, observam e protestam sobre o curso político do lugar onde vivem – daí o sentido da assinatura MUNDANO, uma palavra que sempre intrigou o artista por seu significado pejorativo, e que aqui, toma uma conotação diferente. O termo mundano geralmente é usado para criticar alguma ação ou pessoa por se submeter a prazeres físicos ou sujos, enquanto, na perspectiva do artista, a palavra faz mais sentido quando conectado ao nosso potencial de ação enquanto cidadãos do mundo.
Como o próprio artista gosta de chamar, seu grafite é paporreto. Diz na lata o que vê no seu entorno.
Sua arte tem uma marca muito definida: personagens com um balão de diálogo e frases potentes. “Você é um escravo do trânsito” foi estampada no bairro do Brooklin que, todos os dias, é palco de um trânsito intenso e extremamente lento. As contradições e as patologias causadas pela dinâmica urbana são explicitadas em diversos trabalhos.
Em 2007, em uma das suas saídas pela cidade, pintou a carroça de um catador de materiais recicláveis que conheceu no caminho. Vendo como a sua arte influenciou na autoestima do catador, passou a se envolver cada vez mais com esses trabalhadores, pintando suas carroças e levantando fundos para revitalizar e instalar recursos de segurança.
Foi assim que surgiu o projeto Pimp My Carroça em 2012 – uma ONG que recebe diversos tipos de colaborações voluntárias trabalhando junto aos catadores, na intenção de melhorar suas condições de trabalho e incluir uma personalidade à sua carroça através do grafite. As frases surgem de forma orgânica entre o artista e os catadores e traduzem ideias surgidas nesse diálogo.
Este projeto teve desdobramentos internacionais e ganhou 10 prêmios nacionais e internacionais de reconhecimento ambiental e artístico.
Além disso, o Pimp My Carroça também expandiu pra ações escolares e online para financiamentos coletivos.
O que torna possível entender o trabalho de Mundano em três esferas: pública, social e educativa.
A esfera pública é o posicionamento do artista frente ao acesso à arte e ao pensamento crítico. É sempre presente na sua fala que grande parte dos brasileiros não é visitante assíduo de museus. E onde estão essas pessoas? Na rua, ocupadas demais com seus compromissos diários sem possibilidade de dispor de tempo pra dedicar a um consumo de arte institucionalizada. O grafite nesse contexto se mostra não só importante como uma voz que ecoa pela cidade, mas como arte pública, acessível a qualquer pessoa que esteja passando por ali, sem precisar pagar ou entrar em algum espaço restrito.
A esfera social expande os limites da arte e vai até a mobilização social para impulsionar uma causa. O artista, por um interesse pessoal, levou seu trabalho até os catadores e por seu projeto, mobilizou uma cadeia produtiva artística e mecânica para desenvolver diversas atualizações e melhorias nos equipamentos desses trabalhadores. A arte pode estar em outros lugares que não só instituições culturais, mas tem o poder de mexer com a estrutura social e com o afeto entre grupos.
A esfera educativa está organizada dentro do guarda-chuva do Pimp My Carroça em uma ramificação chamada PIMPEX que envolve projetos escolares para revitalizar os equipamentos de trabalho de um determinado catador. Essa vertente amplia o debate sobre o sistema de coleta de materiais recicláveis dentro da escola ou da organização que encabeça cada projeto e coloca em destaque o trabalho do catador que, mesmo marginalizado, é elementar neste sistema.
O artivismo, termo perfeitamente aplicável no caso de Mundano, é a união entre os termos arte e ativismo. Surgiu num contexto de crescentes trabalhos artísticos que ultrapassam o caráter exclusivamente artístico e chegam efetivamente na vida social.
Aqui, é evidente o impacto que a arte pública tem de gerar desdobramentos progressivos e consciência coletiva acerca de questões políticas ou de convivência. E é exatamente essa a proposta de Mundano.
Um grande crítico também da administração pública, em 2015, acompanhando a crise hídrica em São Paulo, o artista fez instalações no sistema Cantareira e foi para Califórnia, nos Estados Unidos, que também estava sofrendo com a falta de água. A intervenção nesses espaços foi construída a partir de canos reutilizados, torneiras e placas. Montados em formato e pintura de cacto, elemento simbólico e recorrente nas suas pinturas, os canos representavam a força e resistência no meio de uma paisagem tão escassa. A intervenção foi rápida e durou alguns dias.
A ação mais recente foi apenas há alguns meses, na qual mobiliza o público a criar kits de limpeza aos catadores. Durante a pandemia, parte da população, incluindo muitos catadores, não tem acesso a higiene pessoal e se tornam mais vulneráveis. A ação foi toda online e começou nas redes sociais do artista que ensina a montar o kit formado por garrafas pet – uma com água e outra com sabão líquido – entregues aos catadores ou disponíveis na rua.
Além disso, criou um crowdfunding “Renda mínima para os catadores” com o objetivo de remunerá-los durante esse momento de pandemia que teve o sistema de reciclagem suspenso temporariamente.
Também trabalha com gravuras, instalações e esculturas. Além de ministrar palestras do TED dentro e fora do Brasil.
As técnicas do artista são variáveis, tendo por base o ativismo e a crítica. Mundano hoje representa o potencial artístico de intervenção num sistema engessado e excludente e o nosso poder, enquanto cidadãos, de transformação social.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP.
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