Fruto da colaboração entre o MASP e o Kode Bergen Art Museum na Noruega, Histórias Indígenas reúne artistas do Brasil, México, Peru, Noruega, Suécia, Finlândia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Sob a curadoria conjunta das equipes dos museus e com a contribuição de curadores convidados de cada região abordada, a exposição se destaca como um esforço colaborativo para repensar a representação indígena na arte que transcende fronteiras e cronologias. Ao explorar as regiões da América do Sul, América do Norte, Oceania e Escandinávia, a exposição desenha um panorama diversificado para além das limitações impostas por uma visão tradicionalmente centrada no ocidente.
A escolha de diferentes mídias, desde manifestações artísticas anteriores à colonização até produções da última década, confere à exposição uma amplitude temporal que evidencia a continuidade das expressões indígenas. Mais do que apenas inserir artistas indígenas em uma narrativa política, a exposição destaca artistas excepcionais que escapam de rótulos e ocupam espaços como artistas em sua totalidade, apresentando a militância integrada à arte, e os adjetivos de luta e raça são complementares à excelência artística.
É fundamental notar que Histórias Indígenas não assume a pretensão de abarcar a totalidade ou a universalidade da arte indígena contemporânea. Em vez disso, a exposição se propõe a explorar e apresentar alguns aspectos dessa rica tradição artística; o recorte não diminui sua importância, pelo contrário, revela sua profundidade.
O termo ativismo embute a prática de transformar a realidade histórica e tem emergido como uma poderosa forma de expressão e resistência, inserindo-se no contexto das lutas contemporâneas pela preservação do meio ambiente e dos direitos indígenas.”
Trecho do texto curatorial
A exposição apresenta uma rica seleção de arte engajada, revelando a diversidade de abordagens estéticas na representação das lutas e resistências indígenas. “Ativismos” é a sala mais diversificada da exposição incorporando trabalhos de todas as regiões abordadas e dentre as diversas formas expressivas nela presentes, encontra-se bandeiras, fotografias, vídeos, pinturas, pôsteres e até uma cuidadosa seleção de livros sobre o Movimento Zapatista.
Uma obra notável é a bandeira Tino Rangatiratanga (1990), de Linda Munn, Hiraina Marsden e Jan Dobson, símbolo da resistência maori e, posteriormente, adotada como a bandeira nacional maori. O impacto histórico também é evidenciado pelo registro do pronunciamento de Ailton Krenak em 1987 no Congresso Nacional, uma peça crucial para a inclusão dos artigos 231 e 232 na Constituição Federal, que resguardam os direitos dos povos indígenas.
Nossas visões de mundo são construídas em torno de uma constelação de relacionamentos e, como entidades vivas,
exigem reflexão e cuidado para florescer.”
Trecho do texto curatorial
Ao adentrarmos o núcleo que explora as relações fundamentais para a comunidade e a terra, somos transportados para a região que hoje conhecemos como Canadá. Aqui, as tradições dos povos originários, como os Inuites e os Métis, ganham destaque, revelando uma resistência impulsionada pelo afeto. Cada parede desta sala é uma janela para diferentes manifestações do afeto: o encontro é abordado com o conceito de “visita profunda” com obras pictóricas que ilustram a importância dos encontros comunitários e reuniões familiares. A alimentação, entendida como construção afetiva, é explorada, assim como a relação intemporal com o território, a natureza e o cosmos, apresentando trabalhos que transitam entre linguagens tradicionais e pop, incluindo sátiras.
As narrativas micro-históricas, ou, melhor dizendo, as histórias subjetivas, narram com maior precisão histórias sobre o conhecimento e as culturas de indivíduos e comunidades indígenas no México do que qualquer sina institucionalizada sobre a “diversidade”.
Trecho do texto curatorial
Na contramão dos estereótipos sobre a cultura indígena mexicana, este núcleo imerge na complexidade da identidade na região do México. Aqui é a instabilidade, a multiplicidade e a diversidade do “eu” que são exploradas. A experiência expositiva é enriquecida por tapeçarias que se entrelaçam no espaço, convidando o público a interagir com as obras ao caminhar pela sala. Nomes renomados da arte latino-americana, como Carlos Mérida, Minerva Cuevas e Rufino Tamayo, coexistem, evidenciando a potência da produção artística mexicana que conta também com a presença marcante de uma das raras obras de Frida Kahlo com colagem.
Quando as obras começaram a circular no circuito de arte mais amplo, a popularidade da pintura de “pontos” cresceu rapidamente. Em poucas décadas, esse estilo artístico tornou-se sinônimo do povo e da cultura aborígenes e uma parte icônica do vernáculo cultural australiano.“
Trecho do texto curatorial
O primeiro andar se encerra com a arte contemporânea aborígene na Austrália, onde os últimos 30 anos são representados por obras de um movimento de 1971 nas terras do povoado indígena de Papunya, no Deserto Ocidental australiano. A proposta inicial envolvia a pintura de murais na escola pelos alunos e membros da comunidade, resultando em uma produção contínua de obras que transcenderam Papunya para alcançar diversas regiões da Austrália. As texturas marcantes e padrões geométricos remetem à pintura corporal, sendo notável a mudança de tons ocres para cores vibrantes ao longo dos anos.
Em meio a violência, ao racismo e a perseguição a eles e as suas lideranças, este vídeo é uma mensagem de força, pois o manto é uma testemunha do genocídio e da resistência Tupinambá, afirmando o caráter vivo de sua cultura. A confecção do manto invoca, assim, uma cura simbólica para a doença da colonialidade”.
Trecho do texto curatorial
Descendo ao segundo subsolo, somos convidados a mergulhar na narrativa do vídeo Quando o Manto fala e o que o Manto diz (2010), fruto do encontro entre a artista e pesquisadora Glicéria Tupinambá e o cineasta Alexandre Mortagua. Produzido na Aldeia Serra do Padeiro, o vídeo destaca a perspectiva e o protagonismo da mulher indígena e ao apresentar a narrativa do manto, Glicéria Tupinambá enfatiza a importância da intuição, dos sonhos e da sensibilidade. Além disso, o trabalho traz para o debate a relevância da memória e materialidade dos artefatos indígenas, ressaltando sua simbologia sagrada.
Lance para frente.
lance à frente.
lance com força!
lance de novo.
lance-se para casa.
lance fora.
lance de verdade!
mas, lance de novo.”– James Tapsell-Kururangi
Este núcleo reúne obras de artistas maori da Nova Zelândia que desafiam e reinterpretam a relevância da arte em suas comunidades, investigando o papel das autoridades e da própria terra. As obras apresentam distintas interpretações da pintura tradicional maori, proporcionando rica diversidade de suportes artísticos. Esta seção é um convite para reflexões sobre a identidade maori, o papel da arte na sociedade e as suas diversas possibilidades de manifestação.
Contar uma história requer um narrador.“
Trecho do texto curatorial
Transitando para a região do Peru, este núcleo desafia as representações convencionais do indígena, indo além da visão de objeto de conquista ou de objeto de estudo. Pachakuti, termo quíchua e aimará, denota uma transformação profunda na ordem espacial e temporal, experienciada pelos povos originários durante o contato com os europeus. A curadoria propõe uma subversão da lógica de conhecimento, buscando não apenas a compreensão das diferenças a partir da complementaridade, mas também a transformação daqueles que observam. O destaque vai para a expografia, onde obras são habilmente dispostas de cabeça para baixo, desafiando a perspectiva do público e incentivando uma nova forma de compreensão.
Além de pensarmos sobre os artistas que “miram” o futuro, é preciso destacar que as operações simbólicas dos povos originários têm raízes ancestrais muito mais profundas.”
Trecho texto curatorial.
Este núcleo nos expõe o Brasil, apresentando trabalhos que investigam o tempo fora da dinâmica ocidental. O resgate da atemporalidade que perpassa a natureza e a existência é evidenciado em obras como a pintura de Arissana Pataxó e os trabalhos em cerâmica de Déba Viana Tacana. Cada peça convida o espectador a contemplar o tempo de uma perspectiva diferente, mergulhando na riqueza das tradições e na complexidade das relações temporais.
Composto por obras de artistas indígenas sami na Escandinávia, este conjunto incorpora o conceito de várves, que significa a habilidade de perceber antecipadamente. Dessa forma, as obras transmitem uma característica premonitória, expressando o forte e íntimo vínculo dos sami com a terra e o ritmo da natureza.
Histórias Indígenas não é apenas uma janela para as riquezas artísticas das comunidades indígenas, mas também um espelho que reflete a responsabilidade crescente das instituições culturais em abraçar, respeitar e representar a pluralidade de vozes que compõem a tapeçaria do mundo contemporâneo. Ao repensar a representação indígena na arte, as instituições não se limitam a um papel passivo; pelo contrário, elas se tornam agentes ativos na internalização e fomento das mudanças necessárias. A escolha cuidadosa dos artistas, a abordagem integrada da militância à arte e o recorte internacional da exposição refletem uma postura comprometida com a diversidade cultural e a transformação social.
Que as Histórias Indígenas continuem a ecoar além dos muros do museu, inspirando reflexão, diálogo e ações concretas em prol de um mundo mais inclusivo e consciente de sua rica diversidade cultural.
SERVIÇO
Histórias indígenas
20.10.2023 — 25.2.2024
MASP — Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista
Horários: Terça grátis. Terça, das 10h às 20h (entrada até as 19h); quarta a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h); fechado às segundas
Saiba mais na Agenda Artsoul.
Gostou desta matéria? Leia também:
Bienal das Amazônias 2023 apresenta uma celebração artística e cultural da região amazônica