Apesar de ter ingressado no mundo da cerâmica e do design há poucos anos, Alice Aroeira tem se destacado por seu trabalho sofisticado e delicado. Nascida no Rio de Janeiro e com formação em Desenho Industrial, ela encontrou seu caminho nesse campo de maneira quase casual. Mas a conexão que Alice sentiu com a terra, com o fazer manual e com a história da técnica é admirável.
Desde sua estreia, seu nome tem aparecido em feiras e publicações especializadas, além de compor a curadoria de designers brasileiros do Artsoul Design. Para compreender melhor sua trajetória, influências e fontes de inspiração, conversamos com Alice Aroeira, que gentilmente compartilhou os detalhes de sua jornada e os conceitos que norteiam sua expressão artística.
O interesse de Alice por arte, cultura e criatividade tem raízes difíceis de datar. Vinda de uma família de artistas, a designer cresceu em meio a diversos estímulos criativos. “Eu sempre tive contato com a arte. Meu pai é chargista, caricaturista, e minha mãe é animadora, produtora de animação. A gente inventava um monte de brincadeiras para estimular a criatividade. Eu pegava os materiais que sobravam deles e criava várias coisas: colagens, recortes, desenhos, esculturas de massinha”, recorda.
Eu sempre tive contato com arte, meus pais são artistas e inventávamos um monte de brincadeiras para estimular a criatividade.
Essa atmosfera ajudou Alice a moldar a sua capacidade de expressão desde cedo. Quando chegou a hora de traçar seu destino profissional, ela buscou algo que alimentasse sua chama criativa. Foi quando veio a ideia de cursar a faculdade de Desenho Industrial na PUC-Rio, com foco em moda. Por mais de uma década, Alice trilhou esse caminho sem muitos questionamentos. “Eu tinha muita certeza de que iria trabalhar com moda. Mas hoje, acho que a única certeza que a gente tem é a não permanência. Eu acho que nós somos seres múltiplos. A gente vai descobrindo isso e também tendo coragem para ser múltiplo. O que é ótimo, não é?”, comenta a designer.
Os rumos de Alice começaram a mudar quando ela recebeu um presente especial de um amigo: a introdução à cerâmica. As aulas, iniciadas em 2017, tinham um propósito terapêutico. No entanto, o contato com a terra, as esculturas e as práticas ancestrais associadas à técnica cativaram Alice de imediato.
As peças resultantes dessas aulas encontravam um lar na loja da marca de roupas de Alice, onde eram adquiridas por diferentes clientes. Com a chegada da pandemia, o que começou como uma paixão temporária consolidou-se como profissão. “E então chegou 2020. Eu engravidei e veio a pandemia. Meu filho nasceu na primeira semana de lockdown, estávamos todos presos em casa. Essa foi a virada de chave para mim. Voltei a trabalhar com cerâmica em casa e comecei a criar esculturas maiores, o que foi me levando a essa outra fase da produção. Estava tudo fluindo de forma muito orgânica, muito rápida. E eu tive coragem para encerrar esse ciclo da moda. Foi libertador porque aquele não era mais o meu caminho”, completa. Desde então, Alice Aroeira tem se dedicado a diferentes criações no design a partir da cerâmica.
“O tempo da cerâmica é único. Não adianta a gente querer colocar o nosso ritmo. Tem que estar ciente desse processo da temporalidade do material”
Ainda sobre o método criativo, os sentimentos poderosos que conectam Alice a essa prática se tornam bastante claros. Mais do que uma simples ocupação, a cerâmica parece entrelaçar-se a outros domínios, incorporando procedimentos e reflexões da designer. “A cerâmica está lá, na nossa história, penso muito nisso, em como as mulheres exerceram um trabalho essencial na agricultura, desenvolvendo peças e aperfeiçoando ferramentas com elementos natural. A cerâmica é milenar. Sinto uma conexão profunda quando estou ali, moldando uma peça. Eu sou transportada para outro lugar, um espaço de paz, conexão e calma”, afirma Alice.
A conexão afetiva é ainda mais evidente quando ela expõe o passo a passo da criação. “Cada fase requer muito cuidado, muita atenção, pois a peça vai se transformando totalmente. Ela começa mole, em um estado plástico, depois fica no chamado ‘estado de osso’, completamente dura. Há todo um método para a transição de um estado para o outro, tem que ter calma para evitar trincas. Depois, a peça passa pela primeira queima, chamada de ‘biscoito’, e depois é esmaltada e vai para última queima”, explica a designer.
Toda essa saga, do esboço até a peça secar completamente, pode demorar cerca de 1 mês. Assim, o espaço de calma e relaxamento, tão destacado por Alice ao refletir sobre a prática, é fundamental, pois faz parte da própria essência da cerâmica. “O tempo da cerâmica é único. Não adianta a gente querer colocar o nosso ritmo. Tem que estar ciente desse processo da temporalidade do material”, completa.
Ao conhecer os bastidores, é natural nos identificarmos com suas peças, como as da série “Híbridos”, integrantes do catálogo de design da Artsoul. Com formas orgânicas e curvas envolventes, essas criações têm origem em um dos primeiros trabalhos de Alice, as matriarcas. “É uma continuidade, uma evolução do meu trabalho, talvez de uma forma mais abstrata. São formas muito femininas, muito orgânicas”, comenta.
Além das curvas, a série Híbridos chama a atenção pelas cores e pelo tratamento dado às peças. Alice explica que a última etapa, a esmaltação, acontece apenas na parte interna para tornar o trabalho impermeável, enquanto o exterior mantém a textura e a cor natural da terra, conferindo uma característica distinta com textura naturalmente macia e orgânica, contrastando com a rigidez usualmente associada a esse material.
“Eu não desejava criar um universo com milhares de peças idênticas. Eu quis manter essa característica do objeto colecionável vinda do universo da arte”
Outro aspecto singular no trabalho de Alice é sua prática de numerar suas criações em tiragens, algo comum no mundo da arte, mas raro quando falamos em design. Dessa maneira, cada peça assume uma singularidade, mesmo quando integrada a uma série de trabalhos similares. Ao esclarecer a razão por trás dessa abordagem, Alice entrelaça o fazer artístico ao design.
“Eu venho de um contexto artístico, com pais artistas. Mas também cursei Desenho Industrial na faculdade, onde se aprende a produzir em escala. Assim, eu faço dessa maneira que me permite recriar minhas peças, mas mantendo a essência artística. Eu não desejava criar um universo com milhares de peças idênticas. Eu quis trazer o universo da arte. Na gravura, por exemplo, é uma tiragem limitada. Eu quis manter essa característica, do objeto colecionável vinda do universo da arte”, enfatiza.
Conforme Alice sublinhou desde o princípio, ela se percebe como um ser em constante evolução. Além da série “Híbridos”, ela revela que está imersa na criação de uma nova série. A designer voltou ao trabalho em suas matriarcas, mas de uma forma distinta das figuras que marcaram seus primeiros passos na carreira. “A capacidade que o nosso corpo tem de gerar uma vida é uma coisa que me impressiona. Então está sempre atrelada ao meu trabalho”, comenta.
Não por acaso, a conexão de Alice com a cerâmica se fortaleceu após o nascimento de seu filho e podemos perceber, assim, a temática feminina como um elemento recorrente em suas criações. De acordo com as perspectivas de Alice, a criação da vida e a potência criativa podem ser associadas tanto ao feminino quanto à terra, e isso se torna uma profunda fonte de inspiração para ela.
Vem disso a vontade de incorporar elementos desses dois universos, expressos pela coloração terrosa em sua diversidade de tons e pela fluidez e organicidade das formas. Além de contarem a perspectiva de uma designer, suas peças também conseguem narrar parte da história de uma prática milenar, entrelaçada com os primórdios da humanidade e perpetuada nas mãos e expressões contemporâneas.
Gostou desta matéria? Leia também:
Regina Misk e o design afetivo: tradição e contemporaneidade em harmonia