Analisar a trajetória de Leonardo da Vinci com seus feitos e suas aspirações é uma excelente oportunidade de compreender uma série de transformações que a arte e a sociedade passaram no período do Renascimento na Europa. O artista foi, dentre os mestres renascentistas italianos, o que mais se apropriou da ciência e tecnologia para abrir novas possibilidades em suas produções – das pinturas às invenções mecânicas.
Leonardo carregou em seu nome o lugar onde nasceu em 1452: Vinci, uma comuna da região da Toscana, próxima à Florença. Em uma área rural, teve uma infância rodeada pela natureza, da qual tiraria inspirações para o resto de sua vida. Logo cedo desenhava observando animais e a paisagem, hábito que aprimorou em sua trajetória.
Aos doze anos de idade, Leonardo da Vinci mudou-se com seu pai para a cidade de Florença, um dos maiores centros comerciais e importante polo de produções artísticas da Europa no século XV.
Seu pai, Ser Piero da Vinci, era amigo de um influente mestre de Florença, Andrea del Verrocchio, que aceitou Leonardo como aprendiz aos quatorze anos. Os ateliês naquela época tinham uma forte característica colaborativa, numa época em que as noções de autoria eram diferentes das atuais. Dentro dos ateliês, os mestres faziam a concepção geral da obra, realizavam os detalhes considerados nobres e de difícil execução, e deixavam que seus aprendizes realizassem detalhes menores em um processo de formação.
Uma das colaborações mais importantes de Leonardo nesta fase foi a obra O Batismo de Cristo, concebida por Verrocchio, retratando o batismo de Jesus Cristo por São João Batista. Realizada por volta da metade da década de 1470, a obra recebeu as pinceladas de Leonardo na representação de um anjo com longos cabelos ondulados, posicionado na extremidade esquerda do quadro, observando a cena central. Já naquele momento, ainda em sua juventude, o artista demonstrava uma suavidade característica de sua pintura, que viria a impressionar qualquer um que tivesse contato com suas obras.
Uma cena frequentemente pintada na arte sacra europeia desde a idade média era a anunciação: aparição do anjo Gabriel à Virgem Maria, trazendo a mensagem da gestação do Messias. A versão de Leonardo da Vinci desta cena é considerada por especialistas como um dos primeiros grandes trabalhos do artista, sem contar a ajuda de seu mestre Verrocchio.
Apesar da obra ser configurada em um formato já conhecido na época – no qual a cena principal é construída no primeiro plano, com o Anjo posicionado de joelhos à frente de Virgem Maria, que o recepciona sentada -, Leonardo aplica na realização dessa pintura uma série de inovações que estavam em desenvolvimento no Renascimento. Entre elas, está a perspectiva linear, técnica matemática de planejamento do espaço na pintura que possibilita a construção de uma profundidade ilusória, dando à cena um ar de continuidade espacial.
A mesma técnica foi usada em uma das obras mais icônicas da história: A Última Ceia. Pintada por Leonardo da Vinci entre 1495 e 1498, a cena retrata o momento seguinte a uma revelação de Jesus poucos dias antes de sua crucificação, no qual ele afirma que será traído por um de seus apóstolos.
Para formar uma composição harmônica, Leonardo dividiu os apóstolos em quatro grupos e utilizou as noções matemáticas do método de perspectiva linear. Seu aspecto desgastado se dá pela deterioração causada à obra pela experimentação de Leonardo na hora de pintá-la. Ao contrário de afrescos tradicionais, em que se pinta na argamassa ainda úmida, Leonardo optou por trabalhar com a parede já seca, sem perceber que a tinta não iria aderir bem a essa superfície.
Tema recorrente nas obras da idade média e Renascimento europeu, a última ceia de Leonardo se destaca pela capacidade do mestre italiano em expressar com tanta perspicácia os sentimentos humanos em uma harmonia espacial poucas vezes vista na história. Todas essas características possibilitaram à última ceia uma nova visão que influenciará definitivamente o modo de se representar este momento icônico da narrativa cristã.
Outra marca especial de Leonardo na arte sacra é a humanização das suas Madonas, os conhecidos retratos de Virgem Maria produzidos pelos mestres italianos. Ao invés de construir cenas grandiosas, o artista optou por focar em uma gestualidade suave em composições simples, focando no aspecto maternal e cuidadoso de Maria com o menino Jesus.
Interessava ao artista também retratar aquilo que não é considerado belo. Leonardo observava pessoas idosas e registrava a passagem do tempo em suas peles, seus olhares. Outro retrato marcante feito pelo artista é o São Jerônimo – obra inacabada, como tantas outras iniciadas e abandonadas pelo mestre inquieto. O santo é representado no deserto, com um leão deitado aos seus pés, seguindo a narrativa bíblica. Para dar realidade à situação de penitência sofrida por São Jerônimo, o artista enfatizou a anatomia envelhecida e uma expressão de sofrimento profundo.
A curiosidade de Leonardo da Vinci em entender o funcionamento da vida – e formas de representá-la – o levou a estudar o corpo humano de forma intensa. Pesquisadores apontam que o mestre dissecou corpos de diferentes idades e gêneros para seus estudos. O artista-cientista não só observava todos os aspectos anatômicos – o que viria aprimorar seus desenhos e pinturas de corpos humanos -, como também buscava compreender como cada parte daquele corpo atuava a trabalho de um pleno funcionamento. Assim como via a natureza em plena harmonia, Leonardo da Vinci via o corpo como uma máquina perfeita, e compreendê-la era uma oportunidade de se inspirar para seus projetos artísticos/científicos/mecânicos.
Segundo Walter Isaacson, biógrafo de Leonardo da Vinci, o artista foi influenciado pelas práticas de dissecação de corpos humanos de outro mestre florentino: Antonio del Pollaiuolo, concorrente de Verrocchio.
Sendo um estudioso autodidata e multifacetado, a visão de corpo que Leonardo não se limitava aos estudos anatômicos de observação. O artista buscou referências matemáticas em Marcus Vitruvius, um matemático e arquiteto italiano do século I a.C. que postulou uma série de relações entre o corpo humano e a projeção de um templo arquitetônico. Para Vitrúvio, as proporções de um corpo humano entendido como equilibrado e harmônico poderiam ser uma referência para a arquitetura, em uma visão que relaciona diretamente as formas do corpo com as formas do mundo.
Com base nessa referência, Leonardo produziu seu desenho mais famoso: O Homem Vitruviano, que se tornou uma das imagens mais ilustrativas do Renascimento, simbolizando o encontro entre arte e ciência, tão marcante do período.
O homem desenhado está perfeitamente inserido em um quadrado e um círculo, o que demonstra essa relação matemática sobre o humano. O corpo está dividido por uma série de marcas ao longo dos membros e do dorso, que sinalizam essas proporções relacionais. Um exemplo é o rosto que, segundo esse postulado, é igualmente dividido em três partes.
Os desenhos de Leonardo da Vinci são, inclusive, um de seus maiores legados. Hoje são documentadas mais de 7 mil páginas de desenhos, anotações e estudos reunidos em cadernos que ficaram conhecidos como códices. Com projetos ambiciosos de engenharia, instrumentos musicais, objetos voadores, artilharia militar e muitas outras áreas, os códices carregam um legado que atravessou gerações e ultrapassou os limites de suas pinturas: trata-se do legado das ideias, que proporcionou a Leonardo a alcunha de gênio, mesmo que a maioria desses projetos não tenha ganhado materialidade para além dos esboços.
Um dos códices mais famosos é o Codex Leicester – também conhecido como Hammer – adquirido por Bill Gates em 1994. O caderno contém desenhos e projetos de Leonardo relacionados à hidrodinâmica.
Dentre os projetos mecânicos mais interessantes de Leonardo estão os objetos voadores. O artista-inventor se dedicou a observar diversos tipos de pássaros e morcegos, projetando uma variedade de asas e máquinas em escala humana que combinavam essas diferentes anatomias.
Ainda que os projetos possam não ter obtido sucesso em um aspecto funcional, existem registros que apontam um uso artístico para as invenções. Leonardo também era um produtor de eventos e peças teatrais, e suas invenções foram convertidas em elementos cenográficos e suporte para atuação de artistas no palco.
A manutenção da fama e do legado de Leonardo da Vinci é explicada pelo fato de sua história e obras ainda despertarem a curiosidade de novas gerações. A Mona Lisa, uma das últimas pinturas a receber os retoques do artista no final da vida, também conhecida como La Gioconda, é a obra mais popular da história.
Antes da pandemia, o Museu do Louvre em Paris – onde a obra é conservada e exibida – recebia cerca de 10 milhões de visitantes por ano, e é sabido que dificilmente se visita esse museu sem passar pelo quadro mais fotografado da história.
A obra despertou o interesse de muitos pesquisadores que, ao longo do tempo, foram acrescentando novas informações e novas teorias a respeito da concepção da obra e a vida da figura representada.
Marcada por um olhar que encara o observador e desperta variadas interpretações, junto a um sorriso sutil, a pintura reúne as principais conquistas plásticas do artista. A técnica de sfumato, responsável por dar suavidade à textura de suas pinturas à óleo, permitiu ao artista a construção de um rosto cujas emoções são reveladas pelo olhar de cada observador.
Já a técnica de veladuras, pela qual o artista pintava através da sobreposição de muitas camadas finas de tinta, permitiu a representação de transparências na veste e a ilusão de volume no corpo da modelo.
A identidade da Mona Lisa também é alvo de diversas teorias. A modelo retratada é Lisa Gherardini, uma mulher que vivia em Florença, casada com o comerciante Francesco del Giocondo, que teria encomendado a pintura para presentear sua esposa. Contudo, algumas teorias acrescentam detalhes nessa história.
A mais instigante talvez seja a teoria de que, além de retratar Lisa Gherardini, ao longo dos anos em que trabalhou na pintura, Leonardo pintou a fisionomia de Salai, seu assistente e amante, sobre o retrato original. Gian Giacomo Caprotti, nome real de Salai, posou para Leonardo em muitas ocasiões, incluindo para a realização da obra São João Batista – essa que é comparada à Mona Lisa.
Seguindo essa linha, a Mona Lisa não seria o retrato de uma pessoa só, mas uma fusão. Isso talvez explicaria o motivo da obra nunca ter sido entregue ao Giocondo.
Um fator determinante para a Mona Lisa se tornar tão famosa foi o seu roubo ocorrido no Museu do Louvre em 21 de agosto de 1911. A obra desapareceu durante um dia de manutenção do museu, e o responsável foi o italiano Vincenzo Peruggia, que trabalhava como pintor na época. Dois anos depois a obra foi encontrada na Itália, e Peruggia afirmou que sua intenção era devolver a obra para seu país de origem.
Séculos após a morte de Leonardo da Vinci ainda é possível que novas obras realizadas pelo pintor sejam descobertas. Uma das últimas atribuídas ao artista foi Salvator Mundi, uma representação de Jesus Cristo redescoberta no início do século XXI. A obra já havia pertencido a diferentes reis ingleses no século XVII, mas ao longo do tempo, após esquecimento, foi sendo repassada por leilões como uma cópia de uma obra de Leonardo.
Com a legitimação da autoria de Leonardo, a obra atingiu preço recorde e foi vendida por US$ 450 milhões para um príncipe herdeiro da Arábia Saudita em 2017 em um leilão da Christie’s.
Em 2019, nas comemorações de 500 anos da morte – e do legado – do grande mestre renascentista, o MIS Experience foi inaugurado com a exposição Leonardo da Vinci: 500 anos de um gênio. Partindo dos códices, a exposição trouxe ao espaço expositivo um grande conjunto de reproduções físicas dos projetos desenhados por Leonardo da Vinci, mesmo aqueles que nunca foram de fato construídos pelo artista. Os objetos eram acompanhados dos esboços, demonstrando o aspecto experimental de projetos muitas vezes permeados de toques fantasiosos. Além dos objetos, a exposição trouxe ao museu um formato recentemente explorado em vários lugares do mundo: as exposições imersivas.
Essas exposições que reinventam o modo de se olhar para um artista tão icônico, assim como a constante valorização da obra de Leonardo, comprovam sua relevância inabalável. Leonardo da Vinci afirmava que tinha medo de ser esquecido e, agora, cinco séculos após sua morte, testemunhamos o impacto de seu pensamento e caráter experimental na arte, que deixaram marcas incontornáveis.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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