Élle de Bernardini (Itaqui, Rio Grande do Sul, 1991), é artista visual, performer e bailarina. Possui formação em ballet clássico, ingressando na Royal Academy of Dance de Londres (2011). Já possui um currículo extenso em seus primeiros anos de carreira, tendo participado de exposições como “Histórias feministas: artistas depois de 2000” no MASP (2019), “12 Bienal do Mercosul” (2020) sob curadoria de Andrea Giunta em Porto Alegre, além de outras individuais e coletivas. Em 2019 sua obra de performance mais conhecida “Dance With Me” (2018) passou a integrar a coleção da Pinacoteca do Estado de São Paulo, como a primeira obra de um(a) artista trans no acervo de toda a instituição, depois de ter sido apresentada no octógono dentro da exposição “Somos muit+s: experimentos sobre coletividade” (2019).
ArtSoul – Para quem está te conhecendo hoje, o que considera mais importante que saiba sobre seu trabalho? Quais são as principais questões presentes em sua pesquisa?
Élle de Bernardini – Meu trabalho é sobre a sexualidade na história da humanidade e da arte. Insterseccionando essas duas histórias entorno de um eixo central que são as questões de gênero, sexualidade, desenvolvimento da identidade, apagamentos históricos, e todo o mais que envolve essa particularidade do sujeito e da sociedade. Com frequência minha própria história como mulher trans aparece nos trabalhos. Pesquiso a existência de um novo modelo de sociedade não cis-branco-macho-heteronormativo. Uma sociedade não pautada mais nas dicotomias de gênero, feminino e masculino, e tudo que desta distinção decorre. Para isso sou influenciada pelo pensador também transexual e espanhol chamado Paul Preciado que delineia uma sociedade que ele chama de “Contrassexual”. A noção de contrassexualidade do filósofo aparece em meu trabalho em diferentes suportes e séries de obras. Pensar uma nova geografia corporal, ou seja, como o corpo se organiza e se apresenta, não mais pautado nos gêneros feminino e masculino, bem como as possibilidades das relações interpessoais por meio da aproximação, do apelo ao toque nas próprias obras, e do fetiche entorno do objeto de arte, são questões que me interessam e as quais me preocupo em abordar em meu processo artístico.
ArtSoul – Poderia nos dizer quais artistas são suas principais influências?
Élle de Bernardini -Greer Lankton; Sarah Lucas; Joshep Beuys; Louise de Bourgeouis; Ana Mendieta; Kazuo Ohno; Pina Bausch; Annie Sprinkle; Brancusi; E a Arte Rupestre;
ArtSoul – Segundo seu verbete na Enciclopédia do Itaú Cultural, você foi “uma das poucas bailarinas transgênero a ingressar em uma turma feminina de balé da Royal Academy of Dance de Londres”, em 2011. E então passou a estudar Butô com os artistas japoneses Yoshito Ohno e Tadashi Endo. Como essa formação em especial veio a influenciar seus trabalhos e percepção do corpo?
Élle de Bernardini – Eu estudei para ser uma bailarina clássica. Porém eu fui impedida por uma questão de gênero de tirar o meu DRT, aquele documento que os artistas do corpo e da voz precisam ter para se profissionalizar, sendo mais importante que um diploma universitário. Decepcionada com o mundo do ballet clássico e impedida de seguir meus sonhos na dança clássica, eu procurei no butoh uma forma de me expressar. Nunca me circunscrevi a um suporte especifico, a não ser o ballet clássico, todo o resto não era compreendido por mim como tendo fronteiras muito claras. Deste modo a dança, a performance, as artes visuais, a pintura, a fotografia, tudo se tornou campo de experimentação de ideias para mim. A arte para mim é uma ideia materializada, uma ideia comunicada por meio de objetos, ações, ou quaisquer outros suportes. A percepção que eu tenho do corpo advinda da minha formação em dança clássica hoje atuam em meu trabalho de modo a repensar a geografia corporal, e também como a imagem do corpo, a ideia de corpo, é tida pela sociedade e pelas instâncias da lei, da ciência, e da religião. Não se restringe simplesmente a uma questão de boa percepção corporal, e respiração e técnicas especificas, mas a ideia, o conceito de corpo humano. E como eu estive muitos anos ligada às práticas do corpo junto delas questionávamos os nossos corpos, a formação e imagem deles em cena. Esses questionamentos continuam só que agora canalizados e somados ao desejo de através das artes plásticas apresentar novas formas de viver, conviver, ser e estar no mundo. E no meu entendimento tudo isso passa pelo corpo. Até mesmo as questões políticas são diretamente sentidas no corpo, e não só no espírito/mente/racionalidade.
ArtSoul – Em entrevistas você enfatiza sua preocupação com a história e a história da arte, e como estas são permeadas por apagamentos de narrativas não-hegemônicas. Poderia nos falar um pouco sobre sua visão de construção de narrativas?
Élle de Bernardini – Na filosofia dentre os problemas clássicos existenciais como, “Quem sou? Pra onde vou? De onde vim?” existe um que também é clássico chamado de, “Problema da Identidade”. Esse problema traz a pergunta sobre o que faz com que eu seja eu com o passar do anos, dado que biologicamente todas as células do meu corpo são renovadas. Nós crescemos, mudamos de aparência, de opinião, de comportamento. Então, o que permanece que faz com que olhe a fotografia da Élle criança e saiba que sou eu, que é a mesma pessoa? E uma das respostas que damos para esse problema, e a que mais me interessa, é a resposta das narrativas. A história da minha vida contada por mim e pelos outros é o que permanece e faz com que eu seja eu mesma com o passar dos anos e renovar total das células. A história de vida que cada um de nós possuímos é o nosso bem inalienável, e aquele que garante a constituição da identidade do sujeito. Entendo que o sujeito se constitui a medida do tempo e atravessado por uma série de fatores, sociais, políticos, ambientais, etc, e que todos eles podem e são reduzidos à história. Vivemos em um mundo que apaga narrativas, distorce outras, e por muitas vezes sobrepuja narrativas de um determinado grupo a outro. Lutar pela história é lutar pelo direito de existir, pertencer, permanecer, estar, e ser. E deste modo meu trabalho é uma luta por (re)escrever a história, tanto da arte, como da humanidade, no tocante àquelas pessoas que foram excluídas por não se encaixarem em uma determinada norma de gênero. Como as transexuais por exemplo.
ArtSoul – Uma crise de saúde pública como a atual causa um abalo histórico. Como você vê o papel de artistas em crises de grandes escalas?
Élle de Bernardini – O papel do artista não muda diante de crises históricas mais contundentes. O verdadeiro artista é aquele que sempre persegue seus ideias frente a toda adversidade que o mundo lhe apresenta. E um papel fundamental da arte é acompanhar, de modo reflexivo e representativo, as situações novas que a vida apresenta. Um artista é de certo modo um arqueólogo dos significados, um escavador de sentidos, um historiador de memórias e sentimentos. Ele vive no mundo que o cerca e este mundo inevitavelmente aparece em sua obra. Em uma situação como a que vivemos atualmente espera-se da arte o que sempre se esperou dela, que reflita, represente, apresente, a realidade.
ArtSoul – Em sua pesquisa Transdialética, desenvolvida na 12a Bienal do Mercosul, você vislumbra um “novo modelo de sociedade”. Poderia comentar quais são os pontos centrais desse projeto?
Élle de Bernardini – Neste projeto especial e comissionada pela 12 Bienal do Mercosul eu trago dois trabalhos já existentes meus, que somados dão origem a um terceiro trabalho que é a obra-instalação para a Bienal. Tem esse título em alusão ao método de pensamento dialético do filósofo alemão Hegel. Onde uma ideia nova é apresentada através de um processo de apresentação de um ideia inicial chamada de tese, e sua contraprova, ou refutação, chamada de antítese, e a junção das duas originam uma síntese que nada mais é que uma nova tese, uma nova ideia, que vai dar início novamente a todo o processo dialético, que pode ser também compreendido como um processo quase que infinito de tese, antítese e síntese/tese, e nova antítese, e assim por diante. Esta forma de conceber as ideias é muito parecida com as lutas sociais por direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+ por exemplo. Uma pauta é apresentada, ela é refutada, depois aprovada, e essa pauta está ligada a outra, e traz outras consigo. Por exemplo o que Angela Davis já dizia, que o gênero é atravessado e indissociável da raça e da classe. Deste modo as coisas não são tão simples e estão ligadas todas à uma estrutura maior. Na obra eu apresento as “Formas Contrassexuais” que estão largamente presente em todo meu trabalho plástico; e também uma obra chamada, “Bruna: cidade, feminilidade e dissidência” (2018), que é resultado de um processo de residência no Instituo Adelina (São Paulo) de interação com a artista Bruna Kury, negra e travesti, que aceitou me contar as experiências mais marcantes de sua vida na cidade de São Paulo, desde a sua experiência com a prostituição até o fato de ter morado por um tempo nas ruas. Na obra em fotografias e audios que registram as visitas da Bruna por diferentes localidades de prostituição da cidade de São Paulo, e seus audio relatando sua vida, apresentam uma realidade dura e crua enfrentada diariamente e historicamente pelas mulheres trans e travestis no Brasil. Assim temos, uma tese (que corresponde a realidade crua e dura presente na obra “Bruna: cidade feminilidade e dissidência”) e uma antítese (presente nas “Formas Contrassexuais”), para gerar uma síntese, que é a proposta da instalação “Transdialética” levar o público a refletir sobre a realidade e sobre as formas possíveis de uma nova realidade, de um novo mundo, e fazer esse exercício de pensamento dialético que confronta ideias e visões de mundo para chegar a algo novo, que contém em si a história, que nasce da história, do passado, das teses e antíteses, mas mira o futuro, o novo, a síntese.
ArtSoul – Sua produção perpassa diversas linguagens e suportes, como pintura, performance, instalações. Como funciona sua dinâmica com essas diversas linguagens?
Élle de Bernardini – Meu processo de trabalho é conceitual em primeira instância. Tenho as ideias e então depois vou buscar os suportes e materiais que melhor se encaixam para representar e comunicar a ideia que tive e originou todo o processo. Eu sou uma artista conceitual no modo de operar. Tudo advém primeiro de uma ideia, sendo os suportes o que o próprio nome nomeia, suportes. Que estão à minha disposição para experimentação e criação e realização das minhas ideias artísticas. Eu não me detenho no suporte, na técnica, eles são adaptados, mesclados uns nos outros, subvertidos. Hoje eu trabalho com o que se chama de “Pintura Expandida”, ou seja, os limites do que é pintura são expandidos nas minhas telas quando vemos a presença de outros materiais que não só a tradicional tinta seja ela óleo ou acrílica.
ArtSoul – E como têm sido esse período de isolamento para suas experimentações?
Élle de Bernardini – Um período de muita reflexão e pouca materialização das ideias. Para mim é um momento muito incerto, como se uma nuvem negra não me deixasse ver as coisas com clareza, então estou ainda no plano das ideias, indo muito pouco para os materiais e suportes. Ainda processando, ou como dizemos por vezes entre nós artistas, “deixando cozinhar em banho maria” as ideias. Para mim ainda não é um momento de apresentar nada novo que contenha o que está se dando no momento. Acho que o período ainda é muito incerto, e eu preciso de mais dados e de mais tempo para processar tudo e devolver algo significativo e pertinente ao mundo em forma de arte.
ArtSoul – Adentrar espaços, e abrir caminho para que outros corpos dissidentes tenham a mesma oportunidade é um dos objetivos do seu trabalho. Em relação ao mercado de arte, como você percebe essa inserção?
Élle de Bernardini – Ainda muito no começo. Diria que engatinhando. O mercado de arte hoje no Brasil oficialmente tem um número irrisório de artistas trans representadas, um número que não nos possibilita nem falarmos em termos de porcentagens por exemplo. Algo que já é possível com artistas mulheres, e racializados, como a arte de pessoas de cor. Estas em comparação às artistas travestis e transexuais estão mais avançadas no mercado. Já as instituições como museus, bienais, programas de residências, e exposições públicas tem mostrado uma mudança de cenário mais perceptível e substancial, o que eu espero que seja um passo para que depois o mercado acompanhe e demonstre se não o mesmo grau de interesse, então um maior. Não é problema uma artista travesti vender sua arte no mercado de arte, fazer parte do sistema. O problema são agentes que não são atravessados por uma realidade terrível de violência que se reflete claramente nos números de mortes e expectativas de vida, como a da comunidade travesti e transexual, lucrar com isso sem que nós tenhamos a nossa parte. À César o que é de César. Então às travestis o que lhes são de direito. Nosso trabalho só vai se desenvolver e crescer a medida que formos incentivadas. E também possamos fazer parte do sistema contribuindo para seu aperfeiçoamento e melhoramento. Não podemos ser excluídas dele, e nem nos auto-excluirmos porque ele é predatório. Devemos compreendê-lo, sermos aceitas por ele, e lutar pelas mudanças que acreditamos e são necessárias. Para mim, o que a própria comunidade nomeia de “Fúria Travesti” é a potência criativa e de existência e resistência, provada pela própria história de vida de cada um(a) dxs agentes envolvidos nessa realidade duramente massacrada. É preciso entender essas potencialidades e canalizá-las para o bem, para o avanço da sociedade. Fúria é força, é potência, é criação. O mercado ainda está aprendendo a lidar com ela, aprendendo a como inserir essa forma de arte nova aos olhos dos colecionadores ainda muito atrelados ao neocroncretismo e à outras formas mais convencionais de arte e mais hegemonicamente aceitas e legitimadas como “boa arte”.
Mas é importante salientar que esse esforço cabe a todos os agentes que constituem o mercado, desde os galeristas até os colecionadores. Porque não adianta nada termos artistas trans em galerias com suas obras a disposição do mercado se nenhum colecionador ou instituição se interessa em comprá-las, ou querem ao menos vir a conhece-las. O que eu acho que em termos de investimento e negócios é uma perda enorme de oportunidade, porque nunca na história da arte se falou tanto e se mostrou tanto (mesmo que este tanto ainda seja muito pouco, quase nada) de arte feita pelas chamadas, “minorias”. E logo essa “nova arte” será a arte estabelecida, a arte antenada com o presente, a arte admirada e comentada pelos críticos e publicações, então o colecionador pode estar perdendo a oportunidade de se antecipar e comprar algo que pode vir a valer muito no futuro, assim como sempre aconteceu com os artistas brancos e homens da história, aqueles que admiramos e citamos até hoje. Eles valorizaram com o passar do tempo, e é inegável que o mesmo acontecerá conosco, a medida que todo um pensamento de mundo está se (re)configurando e eu vejo uma sociedade onde nossa presença e existências é indispensável, ou melhor, impensável sem nós. Também é preciso considerar que algumas de nós entraram para a história da arte brasileira pelo pioneirismo de suas carreiras e inserções em instituição e mostrar, e nesse sentido não tenho problema em destacar meu próprio trabalho. Sou pioneira como artista trans em ter obras em acervos de museus no país, e também de certo modo no próprio mercado de arte. Eu junto de mais duas ou três representamos toda nossa comunidade no mercado de arte, ou seja, somos muito poucas ainda. Como boa investidora eu compraria logo, porque é uma questão de tempo até que sejamos realmente valorizadas. A história da arte já admitiu que nossa presença é fundamental para a formação de um novo pensamento e modus operante dentro da própria arte. Nós somos hoje, junto com a arte feita por pessoas negras, não a tendência, mas o futuro que se antecipa no presente. O que para alguns seria impensável, é a verdade do presente. Nós existimos, continuaremos a existir e seguiremos trabalhando e criando. O mercado vai ter que mais cedo ou mais tarde, de modo geral, incorporar isso. Assim como alguns anos atrás se deu com a arte latino-americana nos EUA e na Europa, aquela galeria que não tivesse ao menos um artista latino-americano não estava com nada, e hoje nossa arte é vista e admirada no mundo inteiro e é inegável as contribuições e importância dessa arte para o todo.
ArtSoul – Um dos pontos mais potentes do seu trabalho é a experiência física promovida ao público, pelo tato. Agora que o distanciamento social é regra, você tem pensado outras formas de experiência que seu trabalho pode proporcionar?
Élle de Bernardini – A experiência física que meu trabalho propicia e se preocupa em propiciar ela não é só uma experiência compartilhada, ela também é uma experiência individual, nesse aspecto ela continuará sem ser afetada. Minhas pinturas expandidas por exemplo, cada pessoa experiencia na sua individualidade, não existe um convite coletivo para esta experiência. Já as experiências e obras que requerem essa interação com o outro inevitavelmente no momento terão de ser suspensas por uma questão de força maior, de preservação da vida porque sem ela nem a arte é possível, nada é. Mas é uma questão de tempo para que esta forma de arte de contato físico entre pessoas volte a ser presente e possível.
ArtSoul – Para fechar, poderia nos dizer o que você planeja para os próximos meses?
Élle de Bernardini – Minha individual na Galeria Kogan Amaro com curadoria da Ana Carolina Ralston. Eu agora faço parte do time da galeria paulista Kogan Amaro que gere minha carreira e meu trabalho tanto no Brasil como no exterior. E na sequência, que acredito será no ano que vem, uma individual na sede da Galeria em Zurique na Suiça. E alguns outros projetos institucionais que ainda são surpresa. Por ora o que posso adiantar são estes dois com a Kogan Amaro.
Entrevista concedida pela artista Élle de Bernardini para a revista ArtSoul em Junho de 2020 por Diogo Barros.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.